Concordia do Livre Arbítrio - Parte VII 9

Parte VII - Sobre a predestinação e a reprovação

Seção VI: Opinião de Santo Tomás sobre a predestinação, que é a mais comum entre os escolásticos

1. Nesta passagem, a opinião de São Tomás, que é a mais comum entre os escolásticos, está contida nas duas conclusões seguintes.
Primeira: Nada impede que, em relação aos efeitos particulares da predestinação, dos quais se compõe o efeito completo desta, um seja causa do outro, da mesma forma que, em termos de causa final, o efeito posterior é causa do anterior, embora em termos de causa meritória que, segundo Santo Tomás, se reduz a uma disposição material —, o anterior seja causa do posterior. Por exemplo, dizemos que Deus preordenou conceder a alguém a glória por seus méritos, como disposição e requisito prévio de sua parte ou causa meritória da graça, e que preordenou conceder a alguém a graça, para torná-lo merecedor da glória; por isso, a glória é a causa final dos méritos e da graça. Além disso, a primeira graça é a causa final das disposições que antecedem a infusão da graça. Embora essas disposições não sejam causas meritórias, no entanto, são como a matéria da causa da primeira graça, na medida em que Deus estabeleceu por lei ordinária que sejam disposições necessárias para alcançá-la.
2. Segundo: Em relação ao efeito integral da predestinação, não uma causa por parte do predestinado. Isso é demonstrado da seguinte forma: Tudo o que se encontra no homem e o direciona para a vida eterna está contido no efeito integral da predestinação, incluindo a própria preparação para a graça, que ocorre por meio do auxílio particular de Deus. Portanto, de modo algum pode acontecer que em nós haja alguma causa do efeito integral da predestinação. Assim, considerada dessa forma, a predestinação em seu efeito tem como razão a vontade divina, à qual, como fim, se ordena todo o efeito da predestinação e da qual procede como se fosse um primeiro princípio motor. Assim fala Santo Tomás no corpo deste artigo.
3. Em muitos lugares, Santo Agostinho apresenta essa mesma opinião. Entre muitos outros, está a passagem célebre do De praedestinatione Sanctorum (cap. 15), onde ele diz que na predestinação de Cristo pela qual, segundo São Paulo em Romanos, I, 4, o Filho de Deus foi predestinado e, assim como foi raiz e origem de toda a graça concedida ao gênero humano após o pecado de Adão, assim também o é da predestinação dos demais encontra-se a luz brilhantíssima da predestinação e da graça dos descendentes de Adão. Pois, da mesma forma que o Verbo divino assumiu a humanidade de Cristo sem que houvesse qualquer mérito precedente de sua parte e, por isso, Cristo, como homem, foi predestinado desde a eternidade a ser Filho de Deus sem que seus méritos fossem previstos, assim também aconteceu na predestinação dos santos, que brilhou com o maior fulgor no Santo dos Santos, a partir do qual, como se fosse a cabeça, difundiu-se a graça pela qual cada um dos membros foi predestinado desde a eternidade, sem que nenhum de seus méritos fosse previsto, mas somente pela misericórdia e pela livre vontade divina.
Essa mesma opinião é defendida pelo Mestre das Sentenças (Libri sententiarum, I, dist. 41), Escoto, Durando, Gregório de Rimini (In I, dist. 41), Marsílio de Inghen, João Driedo (De concordia liberi arbitrii et praedestinationis), Caetano, Domingo de Soto (In epistolam D. Pauli ad Romanos, cap. 9) e quase todos os outros seguidores de Santo Tomás, assim como muitos outros.
4. São Tomás, em sua resposta ao terceiro argumento, acrescenta que, por parte dos homens predestinados e dos réprobos, não haveria nenhuma causa ou razão pela qual Deus tivesse predestinado alguns deles e reprovado outros, mas que a razão devemos explicá-la e buscá-la em Deus. Como ele diz, a razão pela qual, de maneira genérica, desde a eternidade Deus tenha escolhido e predestinado alguns homens e a outros os tenha reprovado, é que nos predestinados, ao cuidar deles com clemência, a bondade divina brilhe por sua misericórdia e nos réprobos, ao puni-los justamente, brilhe por sua justiça; esta é a razão que São Paulo oferece em Romanos, IX, 22-23: «Pois se para mostrar Deus sua ira (ou seja, sua justiça punitiva) e dar a conhecer seu poder suportou com muita longanimidade os vasos de ira, maduros para a perdição, e ao contrário, quis fazer ostentação da riqueza de sua glória sobre os vasos de sua misericórdia, que Ele preparou para a glória...»; em II Timóteo, II, 20, diz: «Em uma casa grande não apenas vasos de ouro e prata, mas também de madeira e de barro; uns para usos de honra, outros para usos vis». A única razão de ter determinado predestinar a uns e reprovar a outros, é a vontade divina pela qual Deus quis livremente que isso acontecesse assim. São Tomás oferece dois exemplos. Primeiro: Como a matéria-prima das coisas sublunares é toda da mesma natureza, se alguém perguntar por que Deus, ao estabelecer as coisas pela primeira vez, colocou uma parte delas sob a forma do fogo e outra sob a forma da terra, pode-se muito bem responder que o fez para que, neste universo mundo, houvesse uma diversidade de espécies que, de distintas maneiras, representassem a bondade, sabedoria e poder divinos e também pela conveniência de outros fins. Mas se perguntar por que colocou uma parte das coisas sob a forma do fogo e não fez o mesmo com a parte das coisas que colocou sob a forma da terra, a única razão que poderia ser dada para isso seria que assim o quis. Segundo: Como a natureza de uma arte exige que o artesão coloque algumas pedras em uma parte do edifício e outras em outra parte, a única razão que pode ser dada para que o artesão tenha determinado colocar algumas pedras em uma parte e não em outra, é que assim o quis. No entanto, como diz São Tomás, em Deus não haveria iniquidade por dispor para coisas iguais efeitos desiguais; pois confere aos homens o efeito da predestinação por graça e não porque lhes seja devido. De fato, naquilo que é conferido por graça, alguém, em virtude de seu arbítrio, pode conceder mais a um que a outro sem cometer nenhuma injustiça, nem cometer um delito de discriminação, que pode ocorrer quando algo é conferido por justiça.
5. Aqui vou mencionar de passagem porque é possível que mais adiante não se apresente o momento oportuno que a doutrina que acabamos de apresentar de Santo Tomás não se opõe às palavras de São Pedro em Atos dos Apóstolos, X, 34: «Verdadeiramente compreendi que Deus não faz discriminação, mas, em todo povo, aquele que O teme e pratica a justiça, Lhe é agradável». De fato, neste trecho Pedro não fala de discriminação, que é um crime e se opõe à justiça, mas fala da escolha ou eleição do povo dos judeus e não dos gentios ou do resto do mundo, que compartilhou a graça de Cristo de maneira especial, como se fosse o povo ao qual havia sido prometido o Messias e como se, após a morte de Cristo, a redenção do gênero humano e a abertura das portas do céu, os judeus do futuro fossem a Igreja especial de Cristo e de Deus sobre a qual os dons de Deus desceriam por Cristo de maneira diferente ou mais abundante, como aconteceu antes da vinda de Cristo, quando eram uma Igreja especial sobre os demais povos; mas a lei antiga desapareceu completamente e o muro da lei que até então havia dividido a Sinagoga da Igreja dos gentios foi destruído, e se fez um rebanho comum sob um pastor, assim como uma Igreja comum que acolhe igualmente todos os que desejam acessá-la, tanto entre os judeus quanto entre os gentios, sem qualquer prerrogativa ou divisão entre eles. Por isso, quando São Paulo fala dos convertidos gentios (Efésios, II, 11-22), diz: «Portanto, lembrai-vos de que outrora vós, gentios na carne, chamados incircuncisos por aqueles que se chamam circuncisos na carne, feita por mãos, estáveis naquele tempo sem Cristo, separados da comunidade de Israel e estranhos às alianças da promessa, não tendo esperança e sem Deus no mundo. Mas agora, em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue de Cristo. Porque Ele é a nossa paz: o que de ambos os povos fez um só, derrubando o muro de separação que estava no meio, a inimizade, anulando em sua carne a lei dos mandamentos com seus preceitos, para criar em si mesmo dos dois um novo homem, fazendo a paz, e reconciliar ambos com Deus em um corpo por meio da cruz, destruindo por ela a inimizade. Ele veio e anunciou a paz a vós que estáveis longe e paz aos que estavam perto. Porque por Ele ambos temos acesso ao Pai em um mesmo Espírito. Assim, não sois estrangeiros, nem forasteiros, mas concidadãos dos santos e da família de Deus, edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas (isto é, onde se apoiam os apóstolos e os profetas), sendo a pedra angular o próprio Cristo, em quem todo o edifício bem ajustado cresce para ser um templo santo no Senhor, no qual também vós estais sendo edificados juntamente, para morada de Deus no Espírito». Portanto, visto que a Pedro, como cabeça da Igreja, na visão que teve do lençol (Atos dos Apóstolos, X, 11) que descia do céu no qual estavam todos os quadrúpedes, répteis e aves do céu e no mais que nesse capítulo se conta que aconteceu a propósito da conversão de Cornélio, foi revelado como primeiro dos apóstolos o fim da lei, assim como a igualdade dos gentios e dos judeus na participação da graça de Cristo em um e mesmo corpo da Igreja, que Cristo fundou com seu sangue uma vez desaparecida a lei antiga, admirando-se disso e dirigindo-se aos convertidos e antigos judeus que o acompanhavam, disse: «Verdadeiramente compreendi (a saber, no que aconteceu a propósito da conversão de Cornélio à e no que me foi revelado) que Deus não faz discriminação (como se do mesmo modo que escolheu os judeus antes dos gentios para a Sinagoga, assim também os escolhesse para a Igreja que Cristo fundou com seu sangue), mas, em qualquer povo, aquele que O teme e pratica a justiça, Lhe é agradável (isto é, está disposto a receber a todos igualmente)». Por esta razão, São Paulo (Efésios, III, 1-3, 5-6), logo após as palavras que acabamos de citar, acrescenta: «Por esta causa eu, Paulo, prisioneiro de Cristo por vós, gentios (por esta razão, os judeus quiseram matá-lo por pregar o afastamento da lei de Moisés, foi detido em Jerusalém e escreveu esta carta sofrendo prisão em Roma)... se é que conheceis a dispensação da graça de Deus que me foi dada para convosco: como por revelação me foi dado a conhecer o mistério, como antes vos escrevi brevemente... Mistério que em outras gerações não foi dado a conhecer aos filhos dos homens, como agora foi revelado aos seus santos apóstolos e profetas (isto é, do Novo Testamento) pelo Espírito: que os gentios são co-herdeiros, membros do mesmo corpo (isto é, partes iguais ao mesmo tempo no mesmo corpo da Igreja) e participantes da mesma promessa em Cristo Jesus por meio do Evangelho &c.».
Uma vez esclarecido isso, voltemos ao ponto em que estávamos.
6. Alguns sustentam essa opinião de tal maneira que estabelecem um duplo auxílio divino: um eficaz e outro suficiente, mas ineficaz. Consideram que o fato de o auxílio ser eficaz ou ineficaz não pode ser atribuído de forma alguma ao livre-arbítrio, como se por ele qualquer auxílio seja grande, seja pequeno fosse eficaz ou ineficaz pois, como o arbítrio, em virtude de sua liberdade, poderia consentir e não consentir e cooperar e não cooperar com ele, se consentisse e cooperasse, como está em seu poder, o tornaria eficaz, mas se não consentisse nem cooperasse, como também está em seu poder, o tornaria ineficaz —, mas sim ao próprio auxílio ou a Deus, quando move o arbítrio de maneira eficaz ou ineficaz por meio de seu auxílio, caberia atribuir o fato de o livre-arbítrio consentir ou não consentir, de tal maneira que, sempre que Deus o movesse por meio de um auxílio eficaz pela própria natureza da moção divina e pelo próprio Deus, o livre-arbítrio consentiria e cooperaria em sua salvação, mas se o movesse por meio de um auxílio que, apesar de proceder dEle, não é eficaz, o livre-arbítrio não consentiria nem cooperaria em sua salvação. Afirmam que Deus predestinou por sua livre vontade alguns adultos antes de outros, porque livremente quis conferir àqueles um auxílio eficaz e a estes apenas um auxílio ineficaz. Pois, segundo dizem, Deus predestinou aqueles que decidiu chamar com um auxílio eficaz e conservar neles a graça através desse mesmo auxílio até o fim de seus dias; e a todos os demais, com os quais não quis ser tão generoso, os reprovou, permitindo que caíssem nos pecados pelos quais serão castigados com justiça e endurecendo-os nos pecados cometidos, ao negar-lhes um auxílio eficaz.
Certamente, não hesito em denominar essa opinião, tal como a explicamos, como errônea em matéria de fé.
De fato, se essa opinião for verdadeira, não vejo como a liberdade do nosso arbítrio poderia ser preservada, a qual, em nossos comentários à questão 14, artigo 13 (disputa 23), demonstramos claramente que, mesmo com a graça, presciência e predestinação divinas, é uma questão de na mesma medida que esta última. Pois, se o fato de o livre arbítrio consentir ou não com Deus quando Ele o chama —, cooperar ou não em sua salvação e perseverar ou não na graça, depende da eficácia ou ineficácia do auxílio divino, então isso não dependerá de sua liberdade própria e inata, mas da qualidade do auxílio e da moção divina e, por isso, necessariamente o louvor e o mérito serão deles, e a liberdade do arbítrio para a salvação desaparecerá completamente.
8. Além disso, o auxílio que chamam de 'suficiente e ineficaz' é suficiente para que nosso arbítrio, sem outro auxílio e moção divina, possa consentir com Deus quando Ele o chama —, cooperar em sua salvação e perseverar na graça, ou não é suficiente. Se é suficiente, então o próprio arbítrio pode, em virtude de sua cooperação e liberdade inata, torná-lo eficaz. Mas se não é suficiente, então o chamam erroneamente de 'suficiente e ineficaz'. Acrescente-se que de modo algum podemos culpar nosso arbítrio por não consentir, nem cooperar com Deus, quando Ele o chama com este auxílio, porque não poderia fazer isso sem outro auxílio e a cooperação divina que lhe é negada.
9. Da mesma forma, muitos teriam sido condenados por não terem perseverado na graça recebida; e isso aconteceria por causa do pecado mortal pelo qual teriam perdido a graça. Portanto, com o auxílio que Deus estava disposto a conceder-lhes, eles poderiam evitar esse pecado ou não. Se não puderam, então não pecaram ao consentir em cair nele, porque ninguém peca fazendo algo que não pode evitar. Mas se puderam, então estava em seu poder tornar o auxílio eficaz e perseverar com ele na graça, e à sua própria vontade se deveria que esse auxílio não fosse eficaz.
10. Finalmente, os defensores dessa opinião nunca poderão satisfazer a definição claríssima que a Igreja ofereceu no Concílio de Trento (sessão 6, capítulo 5, cânone 4), que explicamos em nossos comentários à questão 14, artigo 13, no apêndice que oferecemos na disputa 40, que adicionamos após ter composto nossa obra. De fato, se define que de nosso livre-arbítrio depende que os auxílios divinos resultem eficazes ou ineficazes para nossa conversão e justificação. Declaro que frequentemente Deus faz com que, através da multiplicação ou variação dos auxílios, o livre-arbítrio queira aquilo que, em razão de sua liberdade, não desejaria com um auxílio diferente ou menor, apesar de que poderia querê-lo e, consequentemente, um auxílio divino será eficaz em relação a um livre-arbítrio considerado aqui e agora, mas outro auxílio não o será, desde que um mova completamente e o outro não. No entanto, enquanto houver liberdade de arbítrio para se mover em um ou outro sentido e devemos reconhecer que isso sempre é assim —, o próprio arbítrio poderá fazer com que o auxílio que é eficaz para mover completamente resulte ineficaz por não consentir com ele e, da mesma forma, poderá fazer com que o auxílio que não é eficaz resulte eficaz por consentir e cooperar diligentemente com ele. Isso significa que, no estágio desta vida, os homens estão à mercê de sua própria potestade, de tal maneira que podem estender sua mão para aquilo que desejarem. Sobre essa questão, nos estendemos em nossos comentários à questão 14, artigo 13, na última disputa e em nosso Apêndice à Concordia («Resposta à terceira objeção»).
11. Uma vez concluída nossa obra, lemos uma obra sem dúvida erudita, na qual se objeta contra nossa opinião o seguinte. Primeiro: Se do influxo de nosso livre-arbítrio, juntamente com o auxílio ou auxílios divinos, dependesse que os auxílios divinos resultassem ou não eficazes para nossa conversão ou disposição última para a graça, daí se seguiria que, em nossa conversão e justificação, haveria algo que procederia de nós e não de Deus, a saber, um livre influxo tal que tornaria eficazes todos os auxílios; no entanto, isso contradiz o que lemos em Efésios 2:10: 'Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas.'
12. Segundo: Seguir-se-ia que o início da nossa salvação pelo menos no que diz respeito ao influxo do qual ela depende procederia de nós e não de Deus.
13. Terceiro: Seguir-se-ia que os justificados teriam algo que lhes seria devido e que os diferenciaria dos não justificados, fazendo-os sobressair acima deles, contrariamente ao que lemos em I Coríntios, IV, 7: «Pois, quem é que te distingue? O que tens que não tenhas recebido? E se o recebeste, por que te vanglorias, como se não o tivesses recebido?». Por esta razão, necessariamente teríamos que dizer que também este influxo do livre-arbítrio procederia de Deus, quando Ele determina e move o próprio arbítrio por meio do auxílio eficaz com o objetivo de que se produza este influxo livre e este consentimento.
14. Resposta à primeira objeção: Devemos distinguir o consequente. Pois, se quando nele se infere que em nossa conversão algo que procede de nós e não de Deus, está se falando da obra ou ação devida a nós e não ao mesmo tempo —e principalmente— a que Deus, por meio de seu influxo, auxílios e dons, a conduza a um ser sobrenatural que, em ordem e grau, estaria comensurado com a graça que converte em agraciado, então será preciso negar a consequência, porque Deus nos preparou em Cristo —por cujos méritos nos confere auxílios e dons sobrenaturais, para que possamos exercer nossas obras, sendo assim Ele mesmo o autor e o principal produtor delas em nós— todas as obras através das quais nos dispomos para a graça ou, uma vez alcançada esta, avançamos para a vida eterna. Mas quando São Paulo diz que Deus as preparou para que avancemos por elas, sem dúvida, não exclui, mas, antes, fala de nosso influxo livre sobre estas obras, em razão do qual estas também procederiam livremente de nós, junto com Deus, como passos nossos com os quais nós mesmos nos dirigimos para a vida eterna com a cooperação de Deus. Além disso, embora nosso influxo livre sobre nossas ações sobrenaturais lugar às próprias ações e operações totais por totalidade de efeito —como costuma se dizer—, que procederiam da influência sobrenatural de Deus e de nós como duas partes de uma única causa total, no entanto, daria lugar a estas ações na medida em que se as considere de maneira precisa enquanto emanando da influência livre do livre arbítrio e não enquanto, ao mesmo tempo, emanando integralmente de Deus por uma mesma totalidade de efeito, como explicamos em nossos comentários à questão 14, artigo 13, e também frequentemente em outros lugares. Por isso, nestas ações não não coisa alguma, mas tampouco razão formal alguma que não proceda de maneira eficaz tanto de nosso arbítrio, como da influência sobrenatural de Deus sobre elas. Assim também, quando dois homens empurram uma embarcação, nesta tração e movimento não nada que proceda de um deles e não do outro simultaneamente, apesar de que se pode dizer que a totalidade do próprio movimento e a totalidade da ação, enquanto consideradas de maneira precisa procedendo de um homem, seriam influxo deste homem e, enquanto consideradas de maneira precisa procedendo do outro homem, seriam influxo deste outro homem. Mas se no consequente se fala de alguma coisa, isto é, de alguma realidade ou formalidade, mas não considerada em termos absolutos, mas considerada de maneira precisa enquanto emanando de uma parte de sua causa íntegra —do mesmo modo que dizemos que nossas ações sobrenaturais que procedem simultaneamente de Deus e de nós, são influxo de nosso arbítrio, na medida em que procedem de maneira precisa de nosso arbítrio—, então será preciso admitir que algo que procede de nosso arbítrio e de Deus, mas enquanto criador da natureza e do próprio livre arbítrio, porque nos teria conferido esta faculdade a fim de que assim cooperemos livremente com Ele em nossas ações e, por isso, sirvam de louvor e mérito nossos, enquanto que, deste modo, estariam em nossa potestade. Estas mesmas ações, na medida em que as consideremos de maneira precisa enquanto procedentes de nosso arbítrio, também podem ser atribuídas a Deus, não porque incita e atrai nosso arbítrio por meio dos dons da graça preveniente para que influa sobre estas ações e, por esta razão, torna mais fácil o influxo e a cooperação de nosso arbítrio, mas também porque, se não coopera por meio desta graça preveniente na mesma ação com vistas à qual influi sobre nosso arbítrio, do mesmo modo que esta ação não se produzirá, tampouco terá lugar o influxo de nosso arbítrio sobre ela, como explicamos em nossos comentários à questão 14, artigo 13. No entanto, nosso arbítrio em seu influxo sempre tem liberdade para que estas ações se produzam ou não e, consequentemente, para que os auxílios que nos previnem e coadjuvam conosco, resultem eficazes ou ineficazes e inúteis; não vejo como se pode negar isto sem prejuízo da católica.
15. De acordo com esta doutrina e o que vamos responder às seguintes objeções, deve-se entender a passagem de Ezequiel, XXXVI, 26-27: 'E vos darei um coração novo, infundirei em vós um espírito novo, tirarei da vossa carne o coração de pedra e vos darei um coração de carne. Infundirei o meu espírito em vós e farei que vos conduzais segundo os meus preceitos e observeis e pratiqueis as minhas normas'; e também a passagem de Isaías, XXVI, 12: '... realizas todas as nossas obras, Senhor'.
16. Resposta à segunda objeção: Como os dons da graça que precedem e incitam nosso arbítrio a consentir e cooperar com eles na disposição final para a graça antecedem o influxo desta, sobre o qual estamos discutindo, é evidente que não se pode inferir corretamente que o início de nossa salvação —no sentido em que Santo Agostinho e os Concílios o negam— proceda de nós pela seguinte razão, a saber, porque este influxo procederia do livre arbítrio quando coopera com os auxílios da graça e os torna eficazes. Pois este influxo não é princípio e origem de nossa salvação, porque muitas outras coisas —que têm como finalidade a graça e nossa salvação— que o antecedem; além disso, em termos de natureza, este influxo não é uma coisa, nem uma razão formal, que não proceda simultaneamente da cooperação de Deus por meio dos auxílios da graça, mas é a própria ação sobrenatural procedente de Deus, assim como do arbítrio, mas considerada apenas com respeito ao nosso livre arbítrio como parte da causa integral de uma mesma ação, como dissemos.
17. Quando dizemos que nosso consentimento faz com que os auxílios da graça sejam eficazes, isso não deve ser entendido como se estivéssemos dizendo que nosso livre-arbítrio confere alguma força ou eficácia aos próprios auxílios. Pois, como explicamos em nossos comentários à questão 14, artigo 13 (disputa 40) e em nosso Apêndice à Concordia ('Resposta à terceira objeção'), nosso livre-arbítrio e influência não conferem nenhuma força aos auxílios da graça, mas, pelo contrário, os auxílios proporcionam ao livre-arbítrio a propensão e a força para escolher o consentimento, incitando, atraindo e ajudando o livre-arbítrio a escolhê-lo. Mas, como é evidente pelo que dissemos anteriormente e pelo que mencionamos nos lugares citados e em outros, neste sentido dizemos o seguinte: Como o fato de um auxílio ser eficaz não significa outra coisa senão que em um momento e pela própria incitação que exerce por necessidade de natureza enquanto graça preveniente a condução total do livre-arbítrio para o consentimento ou a cooperação com ele na contrição ou em outro ato ao qual a graça preveniente convida e como a condução total do livre-arbítrio para o consentimento ou a cooperação com a graça preveniente na contrição depende da liberdade inata do livre-arbítrio, pela qual ele quer ou não quer escolher o consentimento e a cooperação, por isso, que o auxílio da graça preveniente seja eficaz ou seja, que dele resulte o efeito para o qual incita o livre-arbítrio dependerá do próprio livre-arbítrio, quando consente livremente e coopera com ele como parte da causa que deve produzir com ele tal efeito, em relação ao qual, caso ocorra, falaremos de auxílio eficaz e, caso não ocorra porque o livre-arbítrio não teria querido consentir e cooperar —, falaremos de auxílio ineficaz. Por isso, que o livre-arbítrio, uma vez movido com prioridade de natureza e incitado pelo auxílio da graça preveniente, consinta livremente e coopere com este auxílio, não significa que ele lhe confira sua eficácia, mas que estaria cumprindo a condição sem a qual este auxílio não poderia ser considerado eficaz em relação a tal efeito, nem tampouco uma graça coadjuvante com o livre-arbítrio em sua contrição através de um novo influxo sobre ela deste mesmo auxílio, pelo qual cooperaria com o livre-arbítrio na contrição, porque nesta faltaria a cooperação livre do livre-arbítrio com o auxílio, como explicamos extensamente na citada disputa 40 e em nosso Apêndice à Concordia.
Achei necessário acrescentar isso aqui, embora sejam coisas muito evidentes em nossa doutrina, porque não faltaram aqueles que, defendendo alguns auxílios da graça eficazes por si mesmos, tentaram deformar nossa doutrina, como se nós ensinássemos que o arbítrio confere a eficácia ou a força ao auxílio da graça e que haveria uma eficiência ou eficácia sobrenatural que não procederia do auxílio da graça. De fato, toda a eficiência sobrenatural pela qual se produz a contrição procede do auxílio da graça e, além disso, o caráter sobrenatural desse ato se deve totalmente a ele como raiz e causa. Pois, embora o arbítrio coopere nesse ato, ele o faz por meio de sua força natural, à qual não se deve o caráter sobrenatural desse ato, que se deveria à cooperação do auxílio da graça, embora o fato de esse ato ser livre não se deva ao auxílio da graça, mas tão somente ao arbítrio.
18. Resposta à terceira objeção: Aqui, como fizemos em nossa resposta à primeira objeção, devemos distinguir o consequente. Pois, se este for entendido no sentido de que nos justificados haveria algo —isto é, alguma ação ou coisa ou razão formal sobrenatural devida a eles e não simultaneamente e principalmente a Deus— que os diferenciaria dos não justificados e os faria sobressair acima deles, teremos que negar a consequência; pois neles não estaria isso e, além disso, declaramos que, se neles reconhecemos algo assim, tudo isso será um dom sobrenatural de Deus, quer eles cooperem nisso por meio de seu livre-arbítrio, quer não. Por isso, São Paulo (I Coríntios, IV, 7) diz com toda a razão: «Pois, quem é que te distingue...»; isto é, como autor e causa principal dos dons pelos quais superas outros e diferes deles. Daí que, em seguida, ele acrescente: «O que tens que não tenhas recebido? E se o recebeste, por que te vanglorias, como se não o tivesses recebido?». Mas, se o consequente for entendido no sentido de que nos justificados haveria algo sobrenatural que, não em termos absolutos, mas enquanto emanando do livre-arbítrio como parte de uma causa íntegra —e considerado desse modo poderia ser entendido como um concurso do livre-arbítrio—, procederia do próprio livre-arbítrio —e nisso se diferenciaria o justificado dos não justificados ou, mais precisamente, no próprio efeito sobrenatural considerado do mesmo modo, isto é, enquanto emanando do livre-arbítrio e enquanto na potestade do arbítrio estaria consentir naquele momento ou não fazê-lo, como define o Concílio de Trento e como atesta a experiência interior de qualquer um de nós—, então, nesse caso, teremos que admitir a consequência; mas nem São Paulo pretende negar tal coisa, nem ninguém pode negá-la sem prejuízo da católica. Certamente, por essa razão, quem é justificado e, uma vez alcançada a justiça, coopera com a graça e se torna merecedor de seu incremento, é digno de louvor e deverá ser honrado pelo Pai celestial com a beatitude sempiterna.
Em De spiritu et littera (c. 33 e 34), Santo Agostinho diz: 'Daí se segue que São Paulo pergunte se a vontade pela qual cremos é também um dom de Deus ou procede do livre arbítrio que possuímos de maneira natural. Pois, se dissermos que não é um dom de Deus, teremos que temer ter encontrado algo que nos permitirá responder ao Apóstolo quando ele repreende dizendo: O que tens que não tenhas recebido? E se o recebeste, por que te vanglorias, como se não o tivesses recebido? com o seguinte: Eis que temos uma vontade de crer que não nos foi dada. Agora, se dissermos que esta vontade é apenas um dom de Deus, por sua vez, teremos que temer que, com razão, os infiéis e ímpios creiam ter encontrado justamente uma desculpa para não crer, a saber, que Deus não teria querido conceder-lhes esta vontade'; e no cap. 34, resolvendo esta questão, após ter falado da graça preveniente e excitante, acrescenta: 'Portanto, de todos esses modos, quando Deus entra em relação com a alma racional, para que esta creia nEle (pois o livre arbítrio não pode crer em nada, se não o precede uma persuasão ou vocação), Deus opera no homem o próprio desejo e Sua misericórdia nos previne em tudo; mas dar o consentimento à vocação de Deus ou dissentir dela, como eu disse, é tarefa própria da vontade; e as palavras O que tens que não tenhas recebido? não não enfraquecem isso, mas o confirmam. Pois a alma não pode receber, nem ter os dons aos quais essas palavras se referem, se não der seu consentimento; por essa razão, o que receber e o que tiver, se deverá a Deus, mas receber e ter dependerá de quem recebe e de quem tem'. Sem dúvida, da mesma forma que, diante de uma tentação, quem a consente, peca e perde a graça, influencia livremente quando a consente por se determinar voluntariamente a si mesmo a consentir por meio de seu arbítrio e por abusar dele a fim de realizar um ato para o qual Deus não o conferiu e da mesma maneira que não é Deus quem determina seu arbítrio a realizar este ato, nem o inclina por meio de uma aplicação e um movimento eficaz e prévio para que queira este ato, mas apenas coopera com ele como causa universal através de um concurso indiferente em relação ao consenso ou ao dissenso, assim também, quando, estando disponível o auxílio suficiente de Deus que Ele não nega nem mesmo àquele que consente em cair no pecado —, alguém resiste à tentação, alcança a vitória e se torna merecedor de um aumento da graça, é ele mesmo quem livremente e não predeterminado por Deus, mas apenas ajudado se determina e influencia em seu dissenso, podendo também influenciar nesse momento a fim de consentir no pecado e pecar, como define o Concílio de Trento. Portanto, uma vez que consentir à tentação é um abuso do livre arbítrio e não se deve a que Deus o incline a isso mais ainda, Ele apenas ajuda por meio de um concurso universal, que é indiferente por si mesmo em relação ao bem e ao mal —, este consentimento não pode ser atribuído a Deus tampouco como criador da natureza —, mas unicamente ao livre arbítrio e à maldade do pecador. Mas dissentir do pecado e vencê-lo, deve ser atribuído a Deus, não como criador da natureza pois para este fim confere o livre arbítrio —, mas também como aquele que ajuda e inclina através da graça que torna agraciado e de outros auxílios que ajudam a vencer e como aquele que faz tender para ela, mas sem predeterminar, nem aplicar o arbítrio por meio de um movimento e um auxílio eficaz para que, em virtude dEle e não do arbítrio criado, na potestade do arbítrio não esteja consentir e cair na tentação no mesmo instante em que influencia sob a forma de um dissenso e alcança a vitória. Não entendo de modo algum como permanece a salvo a liberdade de nosso arbítrio, se é Deus quem, por meio de um concurso e influxo Seus e não do arbítrio criado, predetermina a eficácia do próprio arbítrio em todos os seus atos. Pois, embora permaneça a salvo uma voluntariedade, que é o único que os luteranos admitem, no entanto, não vejo de que modo possa permanecer a salvo a faculdade do próprio arbítrio para não consentir ou mesmo dissentir no mesmo instante em que consente, sendo esta faculdade a que o Concílio de Trento define, a que cada um experimenta em si mesmo e na qual reside a razão da liberdade de arbítrio.
19. Os autores que defendem a opinião contrária, pressionados pela dificuldade de muitos argumentos que eles mesmos constroem e que, sem dúvida, não podem resolver, sustentam, entre outras coisas, que o homem que recebe os movimentos da graça preveniente ─que, segundo eles, Deus não nega a nenhum pecador─ e que, no entanto, não se converte, porque não lhe é concedido o auxílio eficaz, sem o qual não pode se converter e com o qual ─uma vez que lhe foi oferecido─ não pode resistir, mas necessariamente se converte, como digo, este homem seria culpado por não receber, a partir de então, o auxílio eficaz, por não ter progredido mais fazendo uso dos auxílios recebidos da graça. De bom grado perguntaria a esses autores se progredir mais no uso da graça preveniente é um bom uso do livre arbítrio que conduz à justificação e se pode ocorrer sem outro auxílio de Deus prévio e eficaz para este ato do livre arbítrio e sem a moção prévia e a determinação pela qual Deus determina o livre arbítrio a realizar este ato. Creio que não negarão que é um bom ato do livre arbítrio e que conduz à justificação. Mas se admitem que pode ocorrer sem o auxílio eficaz e sem a moção prévia e a determinação de Deus, cuja eficácia deveria ser atribuída a Ele e não ao livre arbítrio, estarão admitindo a influência do livre arbítrio sobre o ato bom que conduz à justificação; mais ainda, dele dependerá que seja concedido ou não o auxílio eficaz para que se complete a justificação, mas sem que Deus predetermine este ato, mas sim que se deva à determinação do arbítrio criado sobre si mesmo; consequentemente, contra eles se dirigem as três objeções que apresentam contra nossa opinião. Além disso, admitem que Deus não predetermina, nem predefine por meio de seu influxo e moção eficaz, todos os atos moralmente bons; segundo eles, Deus previu com certeza todos os atos e efeitos do livre arbítrio nesta predeterminação ou predefinição ou, mais precisamente, na vontade absoluta divina que os predetermina. Mas se dizem que este ato não pode ocorrer sem o auxílio eficaz de Deus e que, por um lado, na presença deste auxílio e da premoção eficaz, nosso arbítrio realizará necessariamente este ato e, por outro lado, na ausência deste auxílio e desta premoção, não poderá realizar este ato, então não haverá nenhuma razão para considerar culpado nosso livre arbítrio por não progredir mais a fim de realizar este ato, porque, sem outro auxílio prévio e eficaz e sem uma premoção, não estará em seu poder a realização deste ato em maior medida que o ato último pelo qual se completa a conversão do ímpio.
20. Agora voltemos à opinião de Santo Agostinho e de São Tomás, que é a mais comum entre os escolásticos, sobre a predestinação sem esses auxílios eficazes por si mesmos e sem as predefinições para os atos não maus em geral do livre arbítrio por um concurso de Deus eficaz por si mesmo.
Sem dúvida, como é evidente pelo que dissemos até aqui e como também ficará claro pelo que vamos dizer à medida que avançamos nesta questão, aderimos a essa opinião, na medida em que nela se sustenta que não haveria nenhuma causa ou razão para a predestinação em relação ao ato da vontade divina pelo qual se completa o ser da predestinação, ou seja, pelo qual Deus decide conceder a alguns adultos e não a outros os meios pelos quais, segundo Ele prevê, aqueles alcançarão a vida eterna em virtude de sua liberdade; mais ainda, da predestinação também não haveria uma condição necessária por parte do uso previsto do livre arbítrio desses adultos; pelo contrário, que estes sejam predestinados e não outros, dependerá apenas da vontade livre e misericordiosa de Deus, que deseja distribuir Seus dons unicamente por Seu livre beneplácito, sem negar a ninguém uma ajuda suficiente para alcançar a salvação; consequentemente, aderimos a essa opinião, na medida em que nela se sustenta que a predestinação não ocorre pela presciência do uso do livre arbítrio, ou seja, como se Deus decidisse predestinar ou distribuir Seus dons aos adultos em razão da qualidade do uso previsto.
21. No entanto, muitos aderem e defendem essa opinião no seguinte sentido, ou seja, como se Deus, antes de qualquer presciência do uso futuro do livre-arbítrio ─mesmo que hipotética─ e, portanto, na ausência de todo conhecimento sobre esse uso, escolhesse os homens e anjos que quisesse, para conceder-lhes a bem-aventurança, e excluísse os demais dela, querendo essas duas coisas, para que sua bondade e misericórdia brilhem nos eleitos e sua justiça punitiva resplandeça nos demais. Mas então Ele teria ido além, com o objetivo de predestinar aqueles que escolheu, provendo-lhes os meios para que finalmente alcancem a bem-aventurança, e com o objetivo de decidir permitir que outros caiam no pecado e endureçam nele até o fim de seus dias, para puni-los justamente e para que neles resplandeça sua justiça.
22. Será tarefa de outros julgar se Santo Tomás defende apenas o primeiro ponto no qual também nos alinhamos com sua opinião e com a mais comum entre os escolásticos ou se também defende o segundo, o que, em nosso julgamento como diremos o tornaria excessivamente severo. Embora suas próprias palavras tanto em outros lugares quanto nesta passagem, na resposta ao terceiro argumento, que citamos anteriormente pareçam sugerir isso, talvez ele não reflita sobre a predestinação e a reprovação de maneira tão rígida como alguns acreditam; não tenho dúvida de que ele não as considera de forma tão severa quanto aqueles que estabelecem auxílios eficazes por si mesmos e predefinições por um concurso divino e eficaz por si mesmos, como fica evidente pelo que ele diz em De veritate (q. 6, a. 3) e em outros lugares. Mas, como desejamos ardentemente concordar em tudo com este santo Doutor, será muito gratificante se alguém explicar seu pensamento de tal forma que ele defenda apenas o primeiro ponto, como também fazemos. Por nossa parte, vamos expor o que pensamos sobre a opinião de Santo Tomás a respeito dessa questão, explicando em seguida o pensamento de Santo Agostinho.
23. Em relação à doutrina de Santo Agostinho, em primeiro lugar, é evidente que, segundo ele, a causa da reprovação dos homens é o pecado original, como comentaremos mais adiante. Em segundo lugar, como a opinião habitual dos Padres que o antecederam foi que a predestinação ocorre em função da presciência do uso do livre arbítrio, como diremos mais adiante, Santo Agostinho após examinar muito atentamente toda essa questão por ocasião da heresia pelagiana afirmou com razão que a predestinação não ocorre em função dessa presciência ou seja, como se Deus decidisse conferir os dons da graça e da predestinação em razão da qualidade prevista do uso do livre arbítrio —, mas exclusivamente por sua livre vontade, sendo isso algo a que Santo Tomás, a opinião mais comum entre os escolásticos e nós mesmos aderimos. Mas essa opinião, tanto pela novidade que representava em seu tempo, quanto porque Santo Agostinho não acrescentou que a predestinação não ocorre sem a presciência do que o livre arbítrio faria em virtude de sua liberdade dada a hipótese de que fosse colocado em uma ou outra ordem de coisas e circunstâncias, com uns ou com outros auxílios e tampouco sem levar em conta o uso futuro que dele fariam os anjos e os homens que devem ser predestinados e reprovados, embora não de tal modo que os dons da graça e da predestinação lhes fossem conferidos em razão dessa qualidade embora Santo Agostinho não negue isso, no entanto, também não o diz —, sem dúvida, naqueles tempos, perturbou sobremaneira alguns fiéis, como comentaremos mais adiante; pois essa opinião parecia implicar aquela segunda opinião tão cruel que, segundo acabamos de dizer, muitos sustentam e defendem hoje em dia.
Quanto à questão de se Santo Agostinho pretende sustentar o segundo ponto com sua opinião, pois a apresenta de maneira bastante severa, parece que pode nos levar a responder afirmativamente o fato de que, como indicamos em nossos comentários à questão 19, artigo 6 (disputa 1), quando Santo Agostinho explica as palavras de I Timóteo, II, 4: 'Ele quer que todos os homens se salvem', interpreta em muitos lugares de suas obras que essas palavras não se referem a todos os homens de maneira genérica, mas apenas aos predestinados. Mas não menos pode levar a uma resposta negativa o fato de que Santo Agostinho não nega essa presciência anterior a todo ato livre da vontade divina e, consequentemente, anterior a toda predestinação e reprovação —, pela qual Deus sabe o que qualquer arbítrio criado faria, em virtude de sua liberdade, dada qualquer hipótese e qualquer ordem de coisas, como é evidente pelas citações que fizemos de Santo Agostinho, tanto em outros lugares, como em nossos comentários à questão 14, artigo 13 (disputa 52). Por esta razão, não devemos duvidar de que, se consultássemos Santo Agostinho e Santo Tomás sobre esta questão, eles responderiam imediatamente que haveria predestinação e reprovação com essa ciência prévia e levando em conta o uso futuro do livre arbítrio, embora não de maneira que Deus conceda os dons da graça e da predestinação em função da qualidade desse uso; sem dúvida, isso elimina o rigor e a severidade que de outra forma esse parecer acarretaria e também tranquiliza o ânimo dos homens.
Por essa razão, se o meu julgamento sobre essa questão tem algum peso, suspeito que, com suas opiniões, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino que segue os passos do primeiro apenas quiseram expressar o primeiro ponto ao qual também nos aderimos de bom grado, seguindo a opinião mais comum entre os escolásticos —, sem perceber em que grande medida a adição mencionada, que não negaram, nem teriam negado, se tivessem sido consultados sobre ela a saber: predestinação e reprovação com a presciência da qualidade do uso do livre-arbítrio e levando em consideração esse uso da maneira que explicamos e que explicaremos mais detalhadamente adiante —, permitiria eliminar aquele outro aspecto cruel que não buscavam.
No entanto, enquanto Santo Agostinho, de maneira um tanto obscura, não se detém nessa questão, considerando que, à primeira vista, sua opinião sobre a predestinação inclui que Deus não queira que, de maneira genérica, todos os homens se salvem, mas apenas os predestinados, em muitos lugares de sua obra, como dissemos em nossos comentários à questão 19, artigo 6 (disputa 1), ele interpreta as palavras de São Paulo em I Timóteo, II, 4, de tal forma que se entendam referidas apenas aos predestinados. No entanto, os outros Padres tanto anteriores quanto posteriores a Santo Agostinho —, assim como os Doutores escolásticos em comum, não aprovam essa explicação, como dissemos na disputa citada, mas explicam a passagem de São Paulo como referida de maneira genérica a todos os homens, embora a salvação estaria na vontade condicionada de Deus, se não estivesse no poder dos próprios homens ou do primeiro pai. Além disso, embora Santo Tomás cite as explicações de Santo Agostinho, ele se inclina mais para a explicação de Damasceno sobre a vontade antecedente ou condicionada de Deus. Por essa razão, seria mais correto atribuir a Santo Agostinho do que a Santo Tomás o segundo ponto, que torna cruel essa visão sobre a predestinação. Inclusive, em algumas ocasiões, o próprio Santo Agostinho adotou outra explicação da passagem de São Paulo, referindo-a, de maneira genérica, a todos os homens e à vontade condicionada de Deus. Pois, em seu Ad articulos falso sibi impositos (art. 2), ele mesmo ou quem quer que seja o autor dessa obra diz: preciso crer e confessar sinceramente que Deus quer que todos os homens se salvem, porque o Apóstolo, a quem pertence essa opinião, recomenda com muita insistência o que em todas as igrejas se cuida com toda piedade, a saber, elevar súplicas a Deus por todos os homens. Dentre todos eles, muitos perecerão por sua própria culpa; mas a salvação de muitos outros se deverá ao dom de seu salvador; pois a justiça de Deus não é culpada de que o réu seja condenado; mas a justificação do réu se deverá à graça inefável de Deus'. Em De Spiritu et Littera (c. 33), Santo Agostinho oferece essa mesma explicação.
Pelo contrário, Santo Agostinho ou quem quer que seja o autor em Ad articulos sibi falso impositos (art. 2) afirma que a predestinação ocorre com a presciência do uso do livre arbítrio e levando em consideração esse uso; assim aparece citado em Quaest. XXIII, c. 4 (Nabucodonosor): 'Aqueles de quem se diz: De nós saíram, mas não eram dos nossos. Se fossem dos nossos, teriam permanecido conosco; saíram por sua própria vontade e caíram por sua própria vontade. Não foram predestinados, porque houve presciência de sua queda; mas se tivessem a intenção de voltar e viver em santidade e virtude, teriam sido predestinados. Por essa razão, a predestinação de Deus é a causa de que muitos não caiam, mas a ninguém faz cair.'
24. Por tudo isso, é evidente que a opinião sobre a predestinação em relação ao segundo aspecto, como dissemos sobre alguns que a sustentam e defendem, não deve ser atribuída a Santo Agostinho, nem a São Tomás, que apenas segue os passos de Santo Agostinho e afirma com toda clareza que Deus quer que, de maneira genérica, todos os homens se salvem, desde que a salvação não esteja no poder deles.
Agora, embora esses dois Padres se inclinassem para essa opinião, no entanto, sem prejuízo da máxima reverência que lhes é devida, essa opinião não deveria ser admitida em relação ao segundo ponto. Não me surpreende que, entendida dessa maneira, muitos tenham julgado essa opinião demasiado severa e indigna da bondade e clemência divinas, especialmente porque quaisquer adultos seriam reprovados de tal forma que não apenas seriam excluídos da vida eterna e despojados dos dons gratuitos, mas também seriam escravizados a sofrer tormentos eternos e cruéis porque Deus não os teria predestinado desde a eternidade. De fato, que equidade para não falar de bondade ou clemência pode suportar que, sem considerar em absoluto o uso do livre arbítrio, Deus apenas tenha escolhido e predestinado desde a eternidade alguns homens em particular, deixando os demais, que seriam quase inumeráveis, sem escolha e sem predestinação, sabendo que imediatamente seriam futuros réprobos, principalmente ou exclusivamente pela seguinte razão, a saber, para ter assim aqueles a quem castigar e em quem exaltar sua justiça punitiva? Da mesma forma, que equidade, bondade e clemência podem exigir que, apenas pela pura vontade divina e sem considerar o uso do livre arbítrio, Deus decida que alguns homens em particular sejam predestinados e outros reprovados? Certamente, isso parece próprio de alguém duro, feroz e cruel, antes que do príncipe clementíssimo e autor de toda consolação, bondade e piedade; desse modo, em vez de ser exaltada, a justiça divina se obscurece; explicamos isso mais detalhadamente em nossos comentários à questão 23, artigo 3, ao falar da permissão dos pecados.
25. Além disso, essa opinião é pouco conforme às Sagradas Escrituras. De fato, se por Sua única vontade e para ter em quem manifestar Sua misericórdia e Sua justiça punitiva, sem levar em consideração de forma alguma o uso do livre arbítrio dos homens e dos anjos ou qualquer outra coisa que pudesse ser conhecido sobre eles, Deus decidiu desde a eternidade que apenas alcancem a bem-aventurança e sejam predestinados aqueles que Ele designou, assim como excluir dela os demais, para que persistam em sua reprovação, e quis criar os homens, os anjos e todo este universo com vistas a esse fim, pergunto: como pode ser verdade que Deus quis que todos os homens se salvem e que os tenha criado a todos para que alcancem a felicidade eterna? Da mesma forma, por que razão, como lemos em Ezequiel 18:23, Ele afirma sob juramento que não é Sua vontade a morte do ímpio, mas que ele se converta e viva? Assim também, por que razão nas Sagradas Escrituras Ele convida todos os homens de maneira genérica e sem exceção a que façam penitência e alcancem a vida eterna? Ou então, com que direito Ele se queixa de que os não predestinados não vivam e desprezem sua salvação? Certamente, se o que contestamos é verdade, esses convites e repreensões feitos pelo próprio Deus em pessoa e que aparecem nas Sagradas Escrituras parecerão fingimentos e zombarias em relação àqueles que não alcançam a vida eterna, em vez de verdadeiros significados da alma; no entanto, essa afirmação não seria indigna da bondade e majestade divinas, mas também totalmente blasfema. Aqueles que se opõem nunca poderão explicar os trechos citados das Sagradas Escrituras de maneira conforme à sua opinião, a menos que pretendam inferir-lhes abertamente a maior das violências; mas a passagem de São Paulo em Romanos 9:11-23, na qual eles se apoiam especialmente, deveria ser explicada —sem inferir nenhuma violência às suas palavras— de maneira muito diferente da que pretendem, como demonstraremos de forma mais proveitosa na disputa 4. Finalmente, além de que essa opinião proporciona aos homens ocasião de desânimo —para não dizer de desespero, de agir com indolência, de apresentar desculpas e de não pensar em um Deus de bondade, como é necessário— e, por essa razão, parece elevar menos os ânimos dos homens em direção ao seu criador, a quem é preciso amar e respeitar, sem dúvida, não vejo de que modo a liberdade evidentíssima de nosso arbítrio que experimentamos e que as Sagradas Escrituras ensinam com tanta clareza poderia ser conciliada com a predestinação divina assim explicada. Não me surpreende que Cayetano, seguindo ingenuamente essa opinião, declare em seus comentários a Romanos 9 que não sabe conciliar a liberdade de nosso arbítrio com a predestinação divina assim entendida, embora afirme sustentar com firme tanto a predestinação quanto a liberdade de arbítrio.
Além disso, tudo isso teria muito mais força se fosse afirmado que a predestinação ocorre por meio de auxílios eficazes em si mesmos ou por meio de predefinições direcionadas a todos os atos não malvados através de uma cooperação divina e eficaz em si mesma, como é evidente por si só.