Concordia do Livre Arbítrio - Parte VII 7

Parte VII - Sobre a predestinação e a reprovação

Seção IV: No qual examinamos a opinião daqueles que afirmam que a previsão do bom uso do livre-arbítrio, na medida em que precede, pelo menos por prioridade de natureza, à primeira graça justificante, é a razão da predestinação dos adultos

1. Henrique de Gante (Quodlibeta, 4, q. 19) sustenta que, em relação à predestinação no que diz respeito ao seu efeito, não se deve alegar uma causa no sentido próprio, mas que no predestinado deveria ser buscada a razão pela qual Deus teria querido conceder-lhe este dom antes que a outro e, consequentemente, ele teria sido predestinado antes que outro, assim como no adulto deveria ser buscada a razão pela qual um recebe a graça primeira antes que outro. Pois, como ele diz, Deus está disposto a ajudar a todos, embora no adulto não se possa buscar qualquer razão de mérito, no entanto, nele haveria uma causa de congruência, sem a qual e não por causa da qual ele não receberia a graça que a outro é negada por não se dar nele esta mesma causa. Ele afirma de maneira genérica que para nós é totalmente impossível saber quais congruências existem em nós e que devemos exclamar com São Paulo (Romanos, XI, 33): «Oh, profundidade da riqueza…»; e também: «Quão insondáveis são seus juízos…». No entanto, ele diz que um exemplo apropriado disso seria o de dois pecadores adultos cujos corações são movidos pelo impulso da graça preveniente, mas um, em virtude de sua liberdade e de sua maldade, a rejeita imediatamente e o outro não. Pois, embora nenhum dos dois mereça a graça primeira, no entanto, não é inapropriado que Deus ajude mais a um do que ao outro e o conduza à graça, como de fato acontece. Portanto, no caso desses homens, a razão pela qual um recebe a graça antes que o outro é a congruência que podemos reconhecer nele, pelo uso de seu livre arbítrio, mas não no outro; e a previsão dessa congruência seria a razão pela qual, desde a eternidade, Deus teria querido para ele a graça primeira antes que para o outro; também seria a razão pela qual, caso ele persevere na graça até o final de sua vida, seria predestinado antes que o outro. São Boaventura (In I, dist. 41, art. 1, q. 1 e 2) e Alexandre de Hales (Summa Theologica, I, q. 28, m. 3, art. 1 e 3) defendem essa mesma opinião.
2. Henrique de Gante (Quodlibeta, 8, q. 5) acrescenta que a previsão do bom uso do livre-arbítrio é a causa ou, melhor dizendo, a condição que encontramos nos adultos predestinados pela qual alguns teriam sido predestinados antes de outros, de tal forma que o bom uso do livre-arbítrio que precede a primeira graça seria, da maneira que acabamos de explicar, a causa ou a condição sem a qual não teriam sido predestinados, ou seja, uma congruência pela qual, desde a eternidade, Deus teria querido conferir a estes antes que a outros a primeira graça que concede em um momento do tempo; e o bom uso que segue à primeira graça justificante —através do qual perseveram nela sem cair em pecado mortal até o fim de seus dias— seria a causa ou a condição sem a qual, desde a eternidade, Deus nunca teria querido conferir-lhes o incremento da graça e a vida eterna que de fato lhes confere e, por isso, seria a causa ou a condição pela qual Deus teria querido predestinar a estes antes que a outros, dos quais teria pressabido que, por sua culpa, não fariam tal uso de seu livre-arbítrio. Pois, segundo ele diz, embora não haja um bom uso do livre-arbítrio —pelo qual o predestinado se disponha para a graça ou, uma vez alcançada, realize obras meritórias— que não se deva ao mesmo tempo à graça preveniente ou justificante, no entanto, visto que se deve à graça de tal maneira que ao mesmo tempo também se deve ao livre-arbítrio cooperante —que, se quisesse, poderia não cooperar—, por isso, este uso pode ser considerado de maneira precisa enquanto dependente do arbítrio criado; e, considerado deste modo, segundo ele diz, todo este bom uso tomado de maneira coletiva seria como uma causa necessária ou, melhor dizendo, uma condição por parte dos adultos, entendida como uma congruência pela qual Deus teria querido todo o efeito da predestinação para os predestinados antes que para os não predestinados e pela qual, em consequência, aqueles teriam sido predestinados antes que estes. Segundo ele diz, as partes de todo este bom uso seriam as causas ou as condições das partes de todo o efeito da predestinação.
3. Gabriel Biel (In I, dist. 41, q. única), contra a opinião comum dos Doutores, afirma que, propriamente falando, apenas a glória é efeito da predestinação, porque a predestinação se ocupa do fim; e, segundo ele, como nos adultos o mérito antecede o prêmio da glória e o prêmio é conferido por seu mérito, neles estaria a causa meritória da predestinação em relação ao efeito. Mas explicamos anteriormente que a predestinação tem como objeto a beatitude como fim ao qual os predestinados são ordenados, embora contenha os meios pelos quais a alcançam; por essa razão, devemos refutar Gabriel Biel, na medida em que sustenta que, propriamente, apenas a beatitude é efeito da predestinação. Além disso, Gabriel Biel acrescenta que se, junto com o Mestre das Sentenças, dissermos que também a graça primeira é efeito da predestinação, então em muitos predestinados estaria a razão da predestinação em relação a esse efeito, a saber, o bom uso do livre arbítrio que, como disposição de congruência, antecederia a infusão da graça de tal maneira que, sem esse uso, a graça não seria infundida. Nisso ele concorda com os outros Doutores citados. Mas ele diz que a razão da predestinação estaria 'em muitos' predestinados, mas não em todos, porque, como ele diz, no caso de São Paulo não houve um bom uso anterior do livre arbítrio, mas, ao contrário, enquanto perseguia os fiéis, foi chamado à e conduzido à graça milagrosamente apenas pela vontade e misericórdia de Deus. Ele acrescenta que aqueles que foram santificados no útero, como a Virgem Maria e outros, também alcançaram a graça sem uma disposição prévia. Isso mesmo sustenta São Boaventura.
4. Crisóstomo Javelli (Expositio ad primam partem D. Thomae, tr. de praedestinatione, cap. 5) distingue, em primeiro lugar, um gênero triplo de concurso ou auxílio através do qual Deus concorre com o livre-arbítrio criado, a saber: geral, especial natural e especial sobrenatural. Segundo ele, o concurso geral não é suficiente para realizar obras moralmente boas, embora seja suficiente para cometer pecado ou qualquer mal e para realizar ações indiferentes. Ele também afirma que o auxílio especial natural é necessário para que o homem, em estado de natureza caída, possa realizar qualquer obra moralmente boa; segundo ele, as obras moralmente boas que não transcendem os limites das obras puramente naturais ─porque nelas não um auxílio sobrenatural, mas apenas um auxílio especial puramente natural─ são uma disposição para a graça que torna agraciado; mas essa disposição não faz merecer a graça de maneira condigna, mas apenas por congruência, embora, dada essa disposição, Deus sempre infunda a graça que torna agraciado. Além disso, ele pensa que o auxílio especial sobrenatural é concedido para realizar o ato meritório e condigno da vida eterna e seria a própria graça que torna agraciado ou a caridade, que é o princípio eficiente desse ato.
5. Em seguida, afirma que o bom uso previsto do livre-arbítrio —mas não o bom uso devido ao auxílio especial sobrenatural, e sim aquele que procede do auxílio especial puramente natural e antecede a primeira graça, para a qual, apenas por congruência, dispõe o homem como um ato puramente natural— é a causa ou a razão da predestinação por parte do adulto predestinado; explica isso com o exemplo proposto de Jacó e Esaú, distinguindo alguns momentos no ato do conhecimento e da vontade divina. Em primeiro lugar, pensa que Deus quis com vontade antecedente a beatitude para ambos —se alcançá-la não dependesse deles—, quando, nesse momento, não viu nada de desigual nos dois irmãos, mas os viu igualmente capazes de alcançar a felicidade eterna. Em segundo lugar, decidiu estabelecer para ambos leis iguais. Em terceiro lugar, decidiu conceder a ambos o auxílio universal e o particular natural, para que pudessem fazer o bem e o mal morais, conforme quisessem. Em quarto lugar, teve a presciência, por um lado, de que Jacó aceitaria o auxílio especial para realizar boas ações e obedecer à lei divina e, por outro lado, de que Esaú apenas aceitaria o auxílio geral para cometer pecados e más ações; e quis com vontade absoluta recompensar Jacó com a vida eterna, mas não Esaú, e sim, ao contrário, por causa da previsão de seus pecados, quis mostrar nele sua justiça. Em quinto lugar, finalmente, decidiu conferir a Jacó o auxílio especial sobrenatural, ou seja, a graça que o torna agraciado, para que se tornasse merecedor da vida eterna; e isso se deveria àquele primeiro bom uso do livre-arbítrio —em virtude do auxílio particular puramente natural— pelo qual Deus previu que, por congruência, Jacó seria digno dessa graça e, nesse momento, todo o plano da predestinação de Jacó teria se cumprido.
6. Além do que essa opinião compartilha com as anteriores, haveria mais duas coisas pelas quais ela não me agradaria de forma alguma. Primeira: Porque sustenta que, para qualquer obra moralmente boa, é necessário o auxílio especial de Deus. De fato, em nossos comentários à questão 14, artigo 13 (disputa 5), explicamos o contrário. Segunda: Porque e isso é o que soa pior para nós sustenta que todas as disposições que no adulto antecedem a primeira graça são puramente naturais e nenhuma receberia a assistência do auxílio sobrenatural de Deus, nem transcenderia os limites dos atos puramente naturais. No entanto, pelo que dissemos em nossos comentários ao citado artigo 13, segundo cremos, evidência suficiente de que isso é contrário à católica.
7. Se observarmos aquilo em que concordam os Doutores que citamos até agora, a eles deveríamos acrescentar Tomás de Estrasburgo (InI, dist. 41, art. 2), que sustenta que a causa da predestinação dos adultos é a previsão do bom uso de seu livre-arbítrio, desde que, acrescenta, se preveja que eles vão perseverar até o fim de seus dias. Certamente, os demais Doutores admitiriam essa condição, principalmente Javelli, que menciona a opinião de Tomás de Estrasburgo como conforme à sua.
8. Essa mesma opinião foi sustentada por Luciano de Mântua (D. Ioannis Chrysostomi in Apostoli Pauli epistolam ad Romanos commentaria Luciano Mantuano divi Benedicti monacho interprete, cap. 9) e Domingo de Soto a contestou quase como um erro pelagiano. Pelo que podemos deduzir dos comentários de Soto ─já que os escolios de Luciano de Mântua não chegaram às nossas mãos─, ele parece afirmar que a previsão por parte de Deus do bom uso do livre-arbítrio é a causa da predestinação dos adultos, porque, tendo Deus previsto que alguns antes que outros consentiriam e cooperariam nas obras que, por lei ordinária, Ele quis que fossem disposições para a primeira graça e que, uma vez obtida esta, perseverariam nela até o fim de seus dias em virtude de sua liberdade, Deus escolheu estes para conduzi-los à primeira graça e à glória, e aos outros, ao contrário, os rejeitou e reprovou por causa do mau uso de seu próprio livre-arbítrio e pela previsão de seus pecados.
9. Da mesma opinião é Alberto Pighio (De libero arbitrio, lib. 8, cap. 2), pois ele sustenta que, como Deus previu o bom e o mau uso de cada um e está disposto a ajudar cada um a alcançar a graça e a glória de acordo com a qualidade do uso previsto do livre arbítrio de cada um, decidiu conferir a alguns a graça e a glória, mas não a outros.
10. Da mesma forma, Bartolomeu Camerario (Dialogi de praedestinatione) afirma que a previsão do bom uso do livre arbítrio pelo qual o adulto coopera para alcançar sua justificação e a graça primeira e, posteriormente, persevera nela até o final de seus dias, é, como mérito de congruência, a causa da predestinação por parte do adulto ou, certamente, a condição sem a qual ele não teria sido predestinado, de tal maneira que no bom uso do livre arbítrio dos adultos estaria a causa da congruência pela qual Deus teria querido predestinar justamente, por exemplo, Pedro antes de Judas.
Com os Doutores citados concorda Jerônimo Osório, bispo de Silves (De Iustitia, lib. 9).
11. Embora Domingo de Soto, em seus comentários sobre Romanos, IX, discuta apenas com Luciano de Mântua, ele sustenta que a opinião desses Doutores tem um sabor do erro de Pelágio. Mas nada está mais longe disso. Pois Pelágio afirmava que o bom uso do livre arbítrio, feito apenas pelas forças naturais, é digno da vida eterna, da graça e da amizade de Deus e, por isso, cada um pode, apoiando-se apenas em suas próprias forças, ressurgir do pecado e tornar-se justo e digno da vida eterna; e esses Doutores sustentam que nem o uso puramente natural do livre arbítrio, nem o efeito sobrenatural pelo auxílio sobrenatural de Deus e como Ele exige por lei ordinária para que seja a última disposição para a graça primeira, se devem a uma condignidade de méritos, mas nos são conferidos de maneira puramente gratuita pela misericórdia de Deus e sem méritos de nossa parte. Portanto, o que eles querem dizer é isto: Embora Deus conceda gratuitamente os auxílios que dispõem os adultos para a graça e, uma vez que estão dispostos, lhes confira a graça de maneira gratuita ou seja, sem uma condignidade, nem um mérito em termos absolutos que anteceda por parte deles —, no entanto, desde a eternidade Ele quis conferir esses auxílios e essa graça àqueles que, segundo previu, consentirão livremente e, assim, cooperarão em sua justificação como se exige que façamos em um momento do tempo antes que a outros que, segundo previu, não cooperarão assim em virtude de sua liberdade; além disso, quis conferir a vida eterna àqueles que, segundo previu, perseverarão até o fim de seus dias na graça alcançada em virtude de sua liberdade e não a outros que, segundo previu, morrerão em pecado e sem graça por sua própria culpa e mau uso de seu livre arbítrio, de tal maneira que, por parte dos homens adultos, a razão pela qual, desde a eternidade, Deus teria predestinado uns e não outros, seria a previsão do bom uso futuro do livre arbítrio tanto para alcançar a graça primeira, como para perseverar nela até o fim de seus dias naqueles e não nestes em virtude da liberdade de uns e de outros, mas não como se, por uma condignidade e um mérito em termos absolutos, esse uso fosse a razão da predestinação com respeito ao seu efeito, mas apenas por uma congruidade, na medida em que, por um lado, Deus deve querer isso em razão de sua bondade, sabedoria e justiça e, por outro lado, consideradas a bondade, sabedoria e justiça divinas, a própria previsão do uso exige isso mesmo também a seu modo. Os argumentos de Soto não concluem nada contra o mérito de congruo assim considerado, como os demais Doutores admitem em comum com toda a razão. No entanto, teriam força, se disséssemos que o mérito de condigno por parte do pecador antecede à graça primeira.
12. Embora a opinião desses Doutores possa parecer provável à primeira vista, no entanto, se eles pretendem que se entenda no sentido de que Deus escolheria o uso previsto do livre-arbítrio como a medida e regra pela qual, desde a eternidade, Ele teria decidido conceder os auxílios e os meios para alcançar a salvação, de tal maneira que Ele teria um desejo igual de conceder a qualquer homem auxílios e meios para alcançar a salvação, mas isso se tornaria desigual pela desigualdade ou diversidade do uso previsto do livre-arbítrio e, por isso, como razão, origem e raiz pela qual alguns e não outros teriam sido predestinados, poderia ser alegada a previsão do uso do livre-arbítrio, então, nesse caso, não tenho dúvida de que essa opinião não é falsa, mas também não está de acordo com as Sagradas Escrituras e ainda menos com a própria experiência —, representa um prejuízo para a graça divina e, por isso, considero que é pouco segura em matéria de fé, para não dizer outra coisa.
13. Isso pode ser demonstrado, em primeiro lugar, porque, embora Deus nunca negue auxílios suficientes para alcançar a salvação aos adultos que fazem o que está ao seu alcance, como explicamos em nossos comentários à questão 14, artigo 13 (disputa 10), no entanto, em razão do uso futuro do livre-arbítrio, Ele nem sempre concede outros auxílios que servem para alcançar mais facilmente a justificação e a vida eterna; mais ainda, às vezes Ele nega alguns auxílios àqueles que fariam bom uso deles e alcançariam a graça, e, no entanto, os concede àqueles que abusam deles e se tornam piores, como é evidente pela passagem de Mateus, XI, 21: «Ai de ti, Corazim! Ai de ti, Betsaida! Porque, se em Tiro e em Sidônia tivessem sido feitos os milagres que foram feitos em vós, muito tempo teriam se convertido, vestindo-se de cilício e cobrindo-se de cinzas». Eis que aos tirios e sidônios Ele negou os auxílios com os quais se teriam convertido e, no entanto, os concedeu aos habitantes de Corazim e Betsaida; e esses auxílios fizeram com que sua condenação fosse maior. Da mesma forma, quem pode duvidar de que, se Deus tivesse concedido a muitos daqueles que hoje sofrem tormentos no inferno os auxílios extraordinários que concedeu a São Paulo quando ele se dirigia a Damasco, eles teriam se convertido e alcançado a graça? Portanto, Deus não confere os auxílios e os efeitos da predestinação em razão do uso futuro do livre-arbítrio, mas em razão de Seu beneplácito, por Sua misericórdia e generosidade, Ele sopra onde quer, em uns menos e em outros mais, mas em todos sopra o suficiente para que possam alcançar a salvação: a uns Ele concede os dons pelos quais, segundo prevê, chegarão à vida eterna em virtude da liberdade de seu arbítrio; a outros Ele concede os dons com os quais, segundo prevê, não chegarão à vida eterna em virtude dessa mesma liberdade, embora, se quisessem, poderiam fazê-lo.
14. Em segundo lugar: Quem pode duvidar de que, sem qualquer consideração do bom uso futuro do livre arbítrio, aos pais da lei escrita foram concedidos auxílios muito maiores para alcançar a salvação do que aos pais da lei da natureza? As Escrituras do Antigo Testamento ensinam isso frequentemente. Como diz o salmista real (Salmos 147:20), Ele não fez isso a todas as nações, nem lhes manifestou os seus juízos. Da mesma forma, quem pode duvidar de que no tempo da graça foram concedidos auxílios ainda muito maiores do que no tempo da lei escrita e que, por essa razão, na Igreja cristã os predestinados foram proporcionalmente muito mais numerosos e para uma glória muito maior do que na Sinagoga, e que na Sinagoga os predestinados foram muito mais numerosos do que na Igreja da lei natural? Sem dúvida, além dos sacramentos ilustres e salutíferos que Cristo instituiu na lei da graça assim como muitas outras coisas testemunharem isso com toda clareza, Cristo também ensina isso claramente na parábola da vinha (Mateus 20:1-16). Pois o dono mandou remunerar o trabalho muito menor daqueles que foram chamados na última hora ou seja, no tempo da graça com uma recompensa igual à daqueles que trabalharam muito mais, porque, devido às ajudas dos sacramentos, aos maiores auxílios e à graça que na lei da graça são conferidos pelos méritos e instituição de Cristo, o trabalho muito menor daqueles que estão na lei da graça resulta igual ou mais frutífero do que o trabalho maior daqueles que viveram antes do tempo da graça. Por essa razão, os últimos foram os primeiros, e o dono mandou que a retribuição da recompensa começasse por eles; e àquele que reclamou, dizendo: 'Estes últimos trabalharam apenas uma hora, e os igualaste a nós, que suportamos o peso do dia e o calor', o dono, referindo-se à sua graça e generosidade e não ao bom uso e à diligência daqueles que trabalharam apenas uma hora, respondeu o seguinte: 'Amigo, não te faço injustiça; não combinaste comigo um denário? Toma o que é teu e vai. Eu quero dar ao último o mesmo que a ti. Não posso fazer o que quero com o que é meu? Ou tens inveja porque eu sou bom?'. O mesmo testemunho encontramos na bênção cheia de mistérios com a qual Jacó (Gênesis 48:13-20) abençoou seus netos Efraim e Manassés. Pois, tendo seu pai José colocado Efraim, que era o mais novo, à esquerda de Jacó, e Manassés, que era o mais velho, à sua direita, Jacó, cruzando as mãos e estendendo seus braços em cruz, colocou sua mão direita sobre Efraim e sua mão esquerda sobre Manassés, preferindo assim o mais novo ao mais velho; desse modo, ensinou e predisse claramente que, nos tempos do Messias, a Igreja mais jovem deveria ser preferida à Sinagoga e deveria ser enriquecida com os dons maiores que os méritos, a paixão e a cruz de Cristo concederiam às duas Igrejas. Por essa razão, Cristo, voltando-se para seus discípulos (Lucas 10:23-24), disse-lhes: 'Bem-aventurados os olhos que veem o que vós vedes, porque vos digo que muitos profetas e reis desejaram ver o que vós vedes e não viram; e desejaram ouvir o que ouvis e não ouviram'.
15. Em terceiro lugar, quase apresentamos o mesmo argumento: Quem pode duvidar de que, se aos povos que existiram antes da vinda de Cristo tivesse sido pregado o Evangelho com tantos milagres e sinais como foram feitos para a confirmação deste, e se tivessem tido os sacramentos e as demais ajudas para a salvação que o povo cristão possui em abundância, muitos daqueles que hoje estão no inferno teriam feito dessas ajudas e de seu livre arbítrio um uso melhor do que o que fazem muitos cristãos que se encontram entre os predestinados, e teriam alcançado uma beatitude igual ou até mesmo muito maior que a destes? Pois, como afirma São Jerônimo ou quem quer que seja o autor da Epístola a Demétria, virgem, muitos dos antigos filósofos fizeram um uso muito melhor de seu livre arbítrio do que muitos entre os cristãos, embora ninguém duvide de que entre os cristãos muitos mais que fizeram um uso pior de seu livre arbítrio e alcançaram a vida eterna. Portanto, Deus não decide conceder os auxílios e efeitos da predestinação em razão do uso futuro do livre arbítrio.
Esse mesmo argumento pode ser formulado a respeito dos povos que, mesmo após a vinda de Cristo, ainda não receberam os mensageiros do Evangelho devido à distância em que se encontram. Nesse caso, estariam as ilhas japonesas, que, tendo sido agora, pela primeira vez, descobertas e percorridas pelos portugueses, receberam a luz do Evangelho com grande alegria e um fruto incrível; e sabemos que, desde sua origem, essa nação supera muitos povos em costumes e no uso de seu livre arbítrio.
16. Em quarto lugar: Quem pode duvidar de que muitos foram lançados no inferno, tendo cometido menos crimes do que Maria Madalena ─que foi uma mulher pecadora na cidade─ e do que o ladrão que foi crucificado com nosso Senhor Jesus Cristo, apesar de que estes se encontrassem entre os predestinados? Portanto, Deus não costuma conferir os efeitos da predestinação em razão da previsão do uso do livre arbítrio. Acrescente-se que, frequentemente, Deus termina misericordiosamente com a vida de alguns homens justos antes que abandonem a graça, porque, segundo prevê, fariam um mau uso de seu livre arbítrio, se vivessem mais tempo; assim lemos em Sabedoria, IV, 11: «Foi arrebatado para que a maldade não pervertesse sua inteligência, nem o engano seduzisse sua alma»; embora também tenha permitido que Saul ─que, segundo sabemos, antes havia sido um homem justo─ e muitos outros caíssem posteriormente em graves pecados e morressem neles.
17. Em quinto lugar: Deus concede misericordiosamente o efeito da predestinação a algumas das crianças que deixam esta vida antes de atingirem o uso da razão, e a outras o nega, porque algumas delas morrem batizadas e outras sem batismo. Portanto, da mesma forma, embora não negue o auxílio suficiente para a salvação a nenhum adulto, a alguns concede misericordiosamente os auxílios com os quais, conforme prevê, alcançarão a vida eterna e, por isso, os predestinou; mas a outros nega esses mesmos auxílios, com os quais, se lhes fossem concedidos, alcançariam a vida eterna.
18. Em sexto lugar: Isso mesmo pode ser demonstrado com testemunhos das Sagradas Escrituras. Pois São Paulo (Efésios, I, 5) diz: '... nos predestinou para sermos seus filhos adotivos por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade, para o louvor da glória de sua graça'; e acrescenta: 'A Ele, por quem entramos na herança, predestinados segundo seu propósito, pois faz tudo conforme a decisão de sua vontade'. Portanto, como São Paulo diz que fomos predestinados segundo o propósito da vontade de Deus, para o louvor da glória de sua graça, e que por Ele entramos na herança e somos predestinados segundo seu propósito, pois faz tudo conforme a decisão de sua vontade, então é evidente que Deus não decidiu nos conferir todo o efeito da predestinação em função da qualidade do uso previsto do livre arbítrio, como se esse uso fosse a medida dos efeitos da predestinação ou a raiz e origem de nossa predestinação; pois, se assim fosse, São Paulo não diria que entramos na herança e somos predestinados segundo o propósito da vontade divina, mas diria que o somos pela qualidade do uso previsto do livre arbítrio. Da mesma forma, em Colossenses, I, 12, diz: '... graças ao Pai, que vos tornou aptos para participar da herança dos santos'; aqui ele chama de 'herança' o efeito da predestinação. Em II Timóteo, I, 9, diz: '... que nos salvou e nos chamou com uma vocação santa, não por nossas obras, mas por sua própria determinação e por sua graça'; Romanos, IX, 12-15: '... que não depende das obras, mas daquele que chama; e foi dito: O maior servirá ao menor; e também: Amei a Jacó... Serei misericordioso com quem for; terei compaixão de quem eu tiver compaixão'; e conclui: 'Portanto, não se trata de querer, nem de correr, mas de que Deus tenha misericórdia'. Também no Salmo XVII, 20, diz o salmista: '... me salvou porque me amava'. Todos esses trechos deixam claro que Deus não decide conferir o efeito da predestinação em função da qualidade do uso previsto do livre arbítrio, mas em razão de seu beneplácito e vontade.