Concordia do Livre Arbítrio - Parte VII 5

Parte VII - Sobre a predestinação e a reprovação

Artigos IV e V: Disputa I: O predestinado é a causa da predestinação?

Esta discussão não pode deixar de ser um pouco mais ampla devido à profundidade da questão e à dificuldade e variedade de opiniões; mas, para torná-la mais compreensível, vamos dividi-la em várias partes.

Seção I: No qual explicamos o sentido da questão

1. Como a predestinação da vontade divina inclui o propósito de conceder ao predestinado os meios sobrenaturais através dos quais, como Deus prevê, ele alcançará a vida eterna, devemos investigar a causa da predestinação da mesma forma que investigamos a causa da vontade divina. Mas, em nossos comentários à questão 19, artigo 5, explicamos que não pode haver nenhuma causa absoluta da vontade divina em si mesma, embora possa haver uma causa pela qual Ele queira aquilo que quer. Portanto, o sentido da questão não é se alguma causa da predestinação em si mesma, mas sim se, em relação ao efeito, o predestinado pode ser a causa pela qual Deus queira este efeito para um antes que para outro ou, ao contrário, se não se deve estabelecer nenhuma outra causa além da vontade divina pela qual Deus queira fazer uso livremente dessa generosidade com um antes que com outro.
2. Em relação a essa passagem, em primeiro lugar, devemos destacar que ninguém deve duvidar de que as partes do efeito total da predestinação, comparadas entre si, podem ser, por sua vez, as causas pelas quais Deus as quis para o predestinado. Pois a glória é o fim pelo qual Deus quer, para o predestinado, a graça, os méritos e os demais dons sobrenaturais que o preparam para alcançar a graça e a glória; mas, por outro lado, a graça e os méritos são causas dispositivas e meritórias pelas quais o predestinado se torna digno de que Deus o recompense com a beatitude. Portanto, toda a dificuldade é a seguinte: alguma causa para a totalidade do efeito da predestinação —enquanto abrange a glória e todos os meios sobrenaturais com os quais Deus prepara, ajuda e conduz cada um dos predestinados até a beatitude eterna—, pela qual Deus queira conceder tudo isso ao predestinado, ou não nenhuma causa e isso estaria apenas na vontade livre de Deus concedê-lo?
3. Em segundo lugar, devemos destacar que, se no predestinado —considerado antes que Deus queira para ele o efeito da predestinação— está a causa pela qual Deus deseja conceder-lhe a graça primeira ou as disposições sobrenaturais que são exigidas por lei ordinária para receber a graça primeira, então no predestinado —considerado apenas na posse de suas forças naturais— estará a causa pela qual Deus desejará conceder-lhe os efeitos da predestinação. Pois a graça primeira é o princípio e a raiz dos méritos subsequentes e, se se perseverar até o final da vida, é um meio suficiente para conduzir à vida eterna e, por isso, é a causa pela qual Deus quer recompensar o predestinado com a beatitude.

Seção II: Sobre os erros dos luteranos, de Orígenes e de Pelágio. A previsão da fé não é razão da justificação e da predestinação

1. Deixando de lado o erro dos luteranos, que suprime o livre-arbítrio e os méritos, e atribui a Deus criador e à predestinação e reprovação divinas os pecados dos réprobos não menos que as boas obras dos predestinados, como vimos e refutamos extensamente em nossos comentários à questão 14, artigo 13 (disputa 1 e seguintes), o erro de Orígenes, como aqui aponta Santo Tomás, é o seguinte: As almas de todos os homens foram criadas simultaneamente desde o princípio e, em função da diversidade de obras que, em virtude de sua liberdade, realizaram naquele momento, estando nos corpos, foram-lhes atribuídos diferentes estados, e algumas foram predestinadas e outras reprovadas, de tal maneira que toda desigualdade entre elas procede da desigualdade de obras que desde o princípio realizaram, antes de se unirem aos corpos. Ele apresenta este erro em Peri archon (livro 2, capítulo 1 e capítulo final do livro anterior). Leão I (Epístola 35 a Juliano Coense, capítulo 3) parece atribuir-lhe este mesmo erro, porque, referindo-se ao erro de Eutiques, que parecia sustentar que, quando o Verbo se fez carne, trouxe do céu a alma de Cristo, como se esta preexistisse à assunção da carne pelo Verbo, diz: 'Daí que seja necessário que o que com razão se condenou em Orígenes que sustentou que as almas, antes de serem introduzidas nos corpos, não tiveram distintas vidas, mas também distintas ações também nele se castigue, a menos que prefira retratar-se'. São Jerônimo aponta este mesmo erro, mas sem mencionar Orígenes, em seus comentários a Gálatas, I, 15: 'Quando aprouve àquele que me separou do ventre de minha mãe...'; a Efésios, I, 4: '... porquanto nos escolheu nele antes da fundação do mundo'; e em sua Epístola a Demétria, virgem. Também falam deste erro São Epifânio (Epístola a João, bispo de Jerusalém) e Teófilo de Alexandria (Epístola Pascal, livro 1).
Esse mesmo erro foi sustentado por Prisciliano, que foi condenado no Concílio de Braga I (cânon 6) com as seguintes palavras: 'Se alguém disser que as almas humanas pecaram anteriormente em sua morada celestial e que, por essa razão, foram lançadas em corpos humanos, como sustenta Prisciliano, seja anátema.' Leão I menciona e condena esse erro ainda mais abertamente em sua Epístola 91 ao bispo Turíbio de Astorga (capítulo 1).
Teremos que refutar o erro de Orígenes em outro lugar, na medida em que ele inventa que as almas existiram antes de se unirem aos corpos. Mas no que diz respeito à questão que estamos tratando, seu erro é refutado com o que lemos em Romanos, IX, 11-13: «Ora, antes de nascerem, e quando ainda não tinham feito nem bem nem mal para que se mantivesse a liberdade da escolha divina, que não depende das obras, mas daquele que chama foi dito a Rebeca: O maior servirá ao menor, como diz a Escritura: Amei a Jacó e odiei a Esaú»; e em II Timóteo, I, 9: «... nos chamou com uma vocação santa, não por nossas obras, mas por sua própria determinação e por sua graça que nos deu em Cristo Jesus».
2. Segundo o erro de Pelágio, o homem, apenas com as forças de seu livre arbítrio, alcançaria a amizade com Deus, se tornaria merecedor da vida eterna, se levantaria dos pecados, cumpriria todos os preceitos e, por isso, poderia perseverar até o fim de sua vida na amizade e na graça de Deus. Segundo Pelágio, os auxílios e os dons da graça não seriam necessários para que o homem realizasse todas essas coisas, mas sim para que as realizasse mais facilmente e melhor e alcançasse a vida eterna. Por essa razão, ele atribuía todo o efeito da predestinação ao livre arbítrio e aos nossos próprios méritos, e afirmava que Deus teria decidido conferir todos os dons sobrenaturais da graça e da glória a alguns homens antes que a outros, em virtude da previsão dos méritos do livre arbítrio que os homens possuiriam antes de receber esses dons divinos. Por essa razão, ele não atribuía à graça e aos auxílios de Deus que alguém fosse predestinado e outro reprovado, ou que alguém fosse predestinado a uma maior glória e outro a uma menor, mas atribuía tudo isso aos próprios méritos e à habilidade do livre arbítrio.
3. refutamos esse erro com detalhes em nossos comentários à questão 14, artigo 13, onde explicamos que nosso livre-arbítrio não não pode estabelecer amizade com Deus e tornar-se merecedor da vida eterna, mas também, sem o dom e auxílio especiais de Deus, não pode fazer nada —tanto por parte do entendimento, quanto da vontade— para se dispor a receber a graça e atrair a amizade com Deus, nem tampouco, uma vez que o homem foi justificado, pode cumprir toda a lei ou evitar todos os pecados —inclusive os mortais— ou perseverar na justiça recebida, sem o dom e auxílio especiais de Deus. Por isso, como o erro de Pelágio sobre a predestinação se baseia em razões contrárias, não é necessária uma nova refutação.
4. A este erro dos pelagianos podemos acrescentar também, como parte dele, o erro em que São Agostinho esteve antes de se tornar bispo. Pois, pensando que os homens, exclusivamente por suas forças naturais, podem realizar o ato de crer como é necessário para alcançar a salvação, mas não obras meritórias sem caridade, que é um dom de Deus, em sua Expositio quarundam quaestionum ex Epistola ad Romanos (prop. 60-63), ele afirma que a presciência da futura e da infidelidade por parte dos predestinados e dos réprobos é a razão pela qual aqueles teriam sido escolhidos para realizar obras meritórias e por elas teriam sido predestinados para a vida eterna e estes, por outro lado, teriam sido reprovados por sua incredulidade. No entanto, uma vez considerada toda essa questão com maior atenção em suas Retractationes (livro 1, capítulo 23) e em De praedestinatione Sanctorum (capítulo 3), ele se retrata com razão de sua opinião anterior, afirmando que a também é um dom de Deus e efeito da predestinação e, consequentemente, tampouco dessa maneira pode-se dar razão da predestinação, sendo isso evidentíssimo pelo que dissemos em nossos comentários à questão 14, artigo 13. A isso devemos acrescentar que entre os fiéis muitos réprobos; e se compararmos os predestinados com os fiéis réprobos, não podemos dar razão de por que aqueles foram predestinados e estes, no entanto, reprovados.