Concordia do Livre Arbítrio - Parte VII 2
Parte VII - Sobre a predestinação e a reprovação
Disputa II: A predestinação é principalmente um ato do entendimento ou da vontade?
1. Ainda devemos examinar mais duas coisas sobre a predestinação. Primeira: A predestinação é resultado de um ato do entendimento antes que da vontade? Nesta disputa, responderemos a essa pergunta. Segunda: Como são a execução da predestinação e seus efeitos? Na próxima disputa, responderemos a essa pergunta.
2. Portanto, em relação à primeira questão, embora os Doutores concordem que, para que haja predestinação divina, são necessários tanto o ato do entendimento divino pelo qual Deus preconcebe os meios através dos quais —segundo prevê— o predestinado alcançará a vida eterna, quanto também o ato da vontade, pelo qual Ele escolhe e decide conceder esses meios; no entanto, surgem as seguintes dúvidas: A predestinação inclui os dois atos ou apenas um deles? E, se inclui os dois, qual deles é o principal?
3. Duns Escoto (In 1, dist. 40) afirma que o nome 'predestinação' apenas predica um ato da vontade. No entanto, ele acrescenta que também pode ser dito que predica um ato do entendimento e indica um ato da vontade. São Boaventura (In 1, dist. 40, art. 1, q. 2) diz que, antes de tudo, predica um ato da vontade.
4. Essa opinião pode ser defendida da seguinte maneira. Em primeiro lugar: Nas Sagradas Escrituras, o termo 'predestinação' é usado para se referir a uma escolha, propósito e predileção. Assim, lemos em Mateus, XXII, 14: 'Muitos são chamados, mas poucos são escolhidos'; em Efésios, I, 4-5: '... Nele nos escolheu... nos predestinou conforme o propósito de sua vontade'; Romanos, IX, 13: 'Amei a Jacó e odiei a Esaú'. Além disso, a escolha, o propósito e a predileção são atos da vontade.
5. Em segundo lugar: A predestinação inclui a consecução do fim e é causa eficaz dos meios e do fim; portanto, como a vontade divina é causa próxima das coisas, por isso, a predestinação corresponde ao ato da vontade divina.
6. No entanto, devemos estabelecer a seguinte conclusão: 'Predestinação' predica os dois atos de maneira conjunta, embora principalmente indique um ato do entendimento.
O primeiro ponto é demonstrado a partir da própria definição de predestinação, que inclui duas coisas: o plano ou a concepção dos meios pelos quais, conforme Deus prevê, alguém alcançará a vida eterna; e o propósito — ou seja, a vontade — de conceder esses meios, o que completa o plano da predestinação.
O segundo ponto se demonstra assim: Preordenar ou predefinir —que são predicados com o termo 'predestinar'— são atos da razão ou do entendimento, aos quais se acompanha o ato da vontade que os completa. Por isso, o nome 'predestinação' deriva do ato do entendimento, na medida em que a ordem das coisas em direção aos seus fins procede como efeito próprio do entendimento, por isso muitos dizem que 'predestinação' predica um ato do entendimento e indica um ato da vontade, embora isso não deva ser entendido como se não o incluísse de maneira intrínseca. Assim devem ser entendidas as palavras de Santo Tomás, quando, ao definir a predestinação como o plano da ordem ou da transferência da criatura racional para a vida eterna e ao ensinar que é como uma parte sujeita à providência divina, afirma que a predestinação é, sobretudo, um ato do entendimento. Isso mesmo ele ensina em De veritate (q. 6, a. 1), assim como Durando e Gabriel Biel em seus Commentaria in sententiarum libros (1, dist. 40, q. 1) e muitos outros. Esta mesma parte da conclusão também pode ser demonstrada da seguinte maneira. Em primeiro lugar: A predestinação é uma parte da providência divina que está sujeita a ela, mas prover corresponde, antes de tudo, ao entendimento. Em segundo lugar: É tarefa dessa mesma potência predestinar alguém e inscrevê-lo no livro da vida; e o livro da vida significa, sobretudo, o entendimento divino.
7. Há aqueles que consideram que a predestinação se completa por meio do ato da vontade (e a predestinação consistiria principalmente nesse ato), através do qual — uma vez que o entendimento meditou sobre o plano dos meios pelos quais, de acordo com a presciência divina, alguém alcançará a vida eterna — Deus propõe e decide, em virtude de sua vontade, conceder esses meios; no entanto, sustentam que, tanto antes desse ato da vontade, quanto antes do ato do entendimento, ocorre outro ato da vontade, pelo qual Deus escolhe com vontade absoluta aqueles para os quais deseja a bem-aventurança e, desejando para eles o próprio bem da bem-aventurança, primeiro os escolhe e depois — embora sempre de acordo com nosso modo de entender as coisas — os predestina para a bem-aventurança. De fato, acreditam que a vontade do fim precede — de acordo com nosso modo de entender — a meditação e a vontade dos meios em vista do fim; nesses dois atos posteriores residiria todo o plano da predestinação em relação ao fim da bem-aventurança.
8. Mas como não é tarefa da ciência livre que Deus preveja os meios pelos quais alguém alcançará a beatitude, dada a hipótese de que seja colocado em uma ou outra ordem de coisas, mas isso corresponde à ciência média — que se encontra entre a ciência livre e a ciência natural e precede a todo ato livre da vontade, como explicamos em nossos comentários à questão 14, artigo 13 —, por isso, o plano dos meios com vistas ao fim de qualquer predestinado — e, por isso, o que a predestinação de qualquer um significa por parte do entendimento divino —, não é posterior à sua eleição para a beatitude, que Deus realiza com total liberdade.
Aqui devemos destacar que os Teólogos e as Sagradas Escrituras atribuem a Deus uma sabedoria tal que eliminam d'Ele toda imperfeição; mas não se pode eliminar, se sustentamos que Deus, após a vontade livre do fim, busca e examina os meios para a consecução do fim proposto. Pois à imperfeição do nosso entendimento se deve que a deliberação sobre os meios seja posterior à vontade do fim, na medida em que, anteriormente à vontade do fim, não concebemos os meios, nem o resultado destes. No entanto, para Deus as coisas são muito diferentes, porque no seu caso todo o plano tanto das coisas realizáveis, como das factíveis, antecede a todo ato livre da vontade. Por esta razão, o fato de que os homens costumem investigar e examinar os meios para alcançar um fim posteriormente à vontade deste fim, não é boa razão para que filosofemos o mesmo a propósito de Deus e Lhe atribuamos nossas imperfeições.
9. Além disso, em nossos comentários ao artigo 5, explicaremos que Deus não escolheu os predestinados para a vida eterna de outra forma senão se comprazendo nos meios e no fim dos bem-aventurados, que Ele já teria previsto; pois, ao prever com quais meios eles realmente alcançariam a vida eterna e a bem-aventurança, desejou isso para eles e que somente a alcançassem por esses meios. Assim diz São Paulo em Efésios 1,4: 'Nos escolheu nEle, isto é, em Cristo'. De fato, Cristo é o meio de nossa predestinação e não nos escolheu em Cristo de outra forma senão desejando para nós os méritos de Cristo e os demais dons que daí se seguem, em virtude dos quais, segundo Ele previu, nós alcançaremos a vida eterna. Agora, se da mesma forma que São João Damasceno, que a opinião comum dos Padres e até mesmo as próprias Sagradas Escrituras, devemos sustentar de maneira incontestável que Deus criou todos os homens para a vida eterna e que, verdadeiramente e não de maneira fictícia, desejou ardentemente a bem-aventurança para todos com vontade antecedente ou condicionada, no caso de que alcançá-la não estivesse em nossas potências — como explicamos extensamente em nossos comentários à questão 19, artigo 6 —, então o contrário não pode ser afirmado, como já explicamos em nossos comentários ao artigo 5. Mais ainda, nem mesmo no caso contrário poderia permanecer a salvo a liberdade de nosso arbítrio.
10. Outros afirmam que o ato do entendimento incluído na predestinação divina não é um julgamento ou intuição com que Deus preveja o modo e os meios pelos quais qualquer predestinado alcançará a vida eterna, mas sim um mandato do entendimento divino com modalidade de lei e preceito, em virtude do qual prescreve a própria ordenação do predestinado para a vida eterna; este ato seria livre, se expressaria por meio de um verbo no modo imperativo e suporia um ato livre da vontade que aplicaria e moveria o entendimento a realizá-lo. Parece que Santo Tomás defende essa opinião na questão 23, artigo 4, se acrescentarmos o que ele ensina em 1. 2, questão 17, artigo 1.
11. Eles demonstram assim: A providência e a predestinação, conforme o que significam por parte do entendimento divino, são conhecimentos totalmente práticos; e, segundo eles, não o seriam a intuição e o juízo divinos, mas sim o mandato do entendimento divino.
12. No entanto, essa opinião nunca me convenceu. Em primeiro lugar: porque, como explicamos, se não estamos enganados em nossos comentários a 1. 2, questão 17, artigo 1, não é necessário um ato de comando realizado por prudência monástica para que alguém ordene à sua própria vontade ou aos seus membros ou à sua faculdade executora a escolha de um meio ou seu uso para alcançar um fim, mas basta o julgamento através do qual o entendimento conhece os meios e a conveniência de cada um deles em relação a um fim ou quais deles são os mais apropriados para que a vontade, sem outro comando do entendimento, escolha o que preferir e mova os membros ou sua faculdade executora a agir; da mesma forma, em uma arte basta conhecer o modo como se deve proceder na elaboração de qualquer coisa, para que a vontade, sem outro comando do entendimento, mova os membros e os demais instrumentos a fim de fabricar o artefato. Além de outras razões, pelas quais já defendemos isso mesmo no lugar citado, nos leva a essa opinião o fato de que tal ato é supérfluo e, sobretudo, a própria experiência particular de cada um de nós. No lugar citado também explicamos os testemunhos de Aristóteles (Ética a Nicômaco, livro 6, cap. 9 e 10), que parecem ter levado Santo Tomás a falar desse ato. Eu disse que não é necessário esse ato de comando realizado por prudência monástica para fazer funcionar os próprios membros e as faculdades, porque a prudência econômica e política realizam seu ato necessariamente, quando prescrevem a outros o que deve ser observado ou executado. De fato, as leis e os preceitos com que governamos e advertimos a outros são atos e comandos do entendimento que se expressam por palavras e por escrito, como sinais próprios. E se pudéssemos falar mentalmente entre nós, como muitos dizem dos anjos, seriam conhecidos na própria mente do legislador.
13. Em segundo lugar: Com relação a Deus Ótimo Máximo, essa opinião também pode ser contestada. Primeiro: Para que Deus queira de maneira eficaz alguns meios —através dos quais, segundo prevê, um predestinado alcançará a vida eterna— ou outros efeitos de sua providência, basta-lhe o juízo pelo qual reconhece esses meios ou efeitos como apropriados para a consecução do fim; da mesma forma, para que o que quer de maneira eficaz aconteça no momento em que deseja que aconteça, basta-lhe sua vontade divina e eficaz. Portanto, com esses dois atos, o plano da predestinação ou da providência se cumpre totalmente e de maneira perfeita, e é supérfluo atribuir a Deus um ato da vontade através do qual, posteriormente a esse juízo, a vontade mova livremente o entendimento a realizar o ato de mandar, seja em relação à sua vontade dos meios com vistas ao fim, seja em relação à execução e existência desses meios, com o objetivo de que emanem de Si mesmo com eficácia, especialmente porque, da mesma forma que a vontade divina poderia querer o próprio ato livre do mandato —de outra forma, ou Deus não quereria absolutamente nada, ou haveria um processo infinito, tanto nas vontades pelas quais quer os atos de mandar, quanto nos próprios atos de mandar—, assim também poderia querer outras coisas. Segundo: Como afirma Santo Tomás (q. 14, a. 8) e como ensina a opinião comum dos Teólogos, o conhecimento do entendimento divino sozinho não é causa das coisas, mas precisa da determinação livre da vontade pela qual se quis o que se entende. Portanto, segundo nosso modo de entender, baseado na realidade das coisas, nem uma arte, nem qualquer conhecimento do entendimento divino é princípio próximo das coisas, mas apenas a vontade divina e eficaz que determina esse conhecimento; por isso, o mandato do entendimento divino não é princípio próximo das coisas e, consequentemente, não completa o plano da providência, nem da predestinação. Portanto, como parece que, para que Deus possa querer com eficácia as coisas, basta-lhe o conhecimento delas e da correspondência de umas com outras, porque o fato de que, apenas com esse conhecimento, Deus não possa querer a existência das coisas, parece diminuir a potência e perfeição divinas e não é contraditório que possa querê-la, por isso, nem a predestinação, nem a providência, incluem o mandato do entendimento divino. Portanto, quando se diz em Gênesis, I, 3: «Disse Deus: Faça-se a luz. E a luz se fez»; e em Salmos, XXXII, 9: «Porque disse Ele e foi feito; mandou e assim foi»; está-se falando metaforicamente, dando a entender que tudo está sujeito à vontade e potência divinas e que todas as coisas —inclusive as que carecem de conhecimento—, a um só sinal, obedecem a esse agente com vontade e entendimento; também são metafóricas as palavras de Romanos, IV, 17: «Chama à existência as coisas que não são como se já fossem».
14. Com relação à demonstração da opinião contrária, devemos negar que o julgamento e a intuição com que Deus prevê o modo e os meios que devem conduzir alguém à vida eterna ou que devem produzir alguma outra coisa, não sejam um conhecimento totalmente prático.
15. Ainda devemos responder aos argumentos nos quais se apoia a opinião de Escoto e de São Boaventura. Com relação ao primeiro argumento, devemos negar que nas Sagradas Escrituras se denomine 'predestinação' a uma eleição, propósito ou dileção. Pois, embora os eleitos e amados recebam a denominação de 'predestinados', porque à predestinação se unem a eleição para a vida eterna e a dileção, no entanto, daí não se segue que nas Sagradas Escrituras se denomine 'predestinação' à eleição ou à dileção. Pois pode muito bem acontecer que coisas que estão unidas se signifiquem respectivamente com distintos nomes e que cada uma delas em concreto se predique do mesmo suposto. E do fato de que tenhamos sido predestinados conforme ao propósito da vontade divina, não se segue que este propósito seja toda a predestinação, mas que é necessário para que esta se produza e por isso a completa.
16. O segundo argumento apenas demonstra que a predestinação inclui o ato da vontade divina pelo qual Deus quer, de maneira eficaz, na medida em que depende dEle, conceder os meios pelos quais, segundo prevê, um predestinado adulto alcançará a vida eterna com dependência de seu livre arbítrio. Por essa razão, este ato da vontade divina não é a causa total de todos os efeitos da predestinação, porque muitos deles dependem do influxo livre do arbítrio, e tampouco infere qualquer necessidade ao arbítrio criado, como explicaremos em nossos comentários ao artigo 5.