Concordia do Livre Arbítrio - Parte VI 1
Parte VI - Sobre a providência de Deus
Artigo I: Disputa I: Na qual discutimos o que é a providência e se Deus a possui
1. Para que fique evidente o que é a providência, devemos saber que nas coisas podemos reconhecer uma dupla ordem no que diz respeito à questão que estamos tratando. Pois as próprias coisas podem manter entre si uma ordem na ausência de um fim, embora se ordenem desse modo por causa de um fim. Esta é a ordem que as partes de uma casa mantêm entre si; pois os alicerces constituem a base da casa, o telhado a parte superior e as paredes a parte intermediária. Esta também é a ordem que os corpos simples mantêm neste universo, que a partir deles recebe sua unidade; de fato, os corpos mais perfeitos se situam nos lugares mais nobres. A segunda ordem é a que as coisas mantêm com respeito a um fim, seja um fim comum a todas as coisas ─como a manifestação da bondade, da sabedoria, do poder e da justiça divinas─, seja um fim particular.
A concepção da primeira ordem é chamada de 'disposição na mente do artífice'; mas a própria ordem mandada executar é chamada de 'disposição das coisas entre si ou das partes em sua totalidade'. A concepção da segunda ordem com o propósito de executá-la é chamada de 'providência'. Portanto, a providência divina não é outra coisa senão a razão ou concepção de uma ordem de coisas em relação aos seus fins, que está na mente divina com o propósito de mandá-la executar por Ele mesmo ou por intervenção de causas segundas, ou, como define Boécio em De consolatione philosophiae (IV, prosa 6), é a própria razão divina constituída como príncipe máximo de todas as coisas e que dispõe tudo. Mas não se refere, como interpreta Santo Tomás nessa passagem, à disposição que acabamos de explicar, mas à disposição das coisas em razão de seus fins. Pois a palavra 'disposição' costuma ser usada das duas maneiras, como diz Santo Tomás.
2. A providência divina se executa por meio da criação e do governo das coisas criadas. O governo é a direção das coisas já criadas para seus fins e sua perfeição; por isso, pressupõe a criação e a existência das coisas. Mas a conservação dessas coisas e das outras através das quais dirige aquelas para seus fins e as conduz à sua perfeição é tarefa do governo. Portanto, a providência mantém com a criação e o governo a mesma relação que o ato interno que possui uma existência formal em Deus mantém com os atos externos através dos quais ordena executar aquilo que a providência previu e estabeleceu. Por essa razão, neste lugar Santo Tomás fala da providência, quando discute sobre Deus e sobre aquilo que possui existência formal em Deus; mas da criação começa a falar a partir da questão 44 e do governo a partir da questão 103. E que não só o governo, mas também a própria criação, é execução da providência divina, pode ser demonstrado contra o que foi sustentado por Durando (In I Sent., dist. 39, q. 3), porque desde a primeira produção das coisas Deus criou para a utilidade do homem as demais coisas corpóreas de uma maneira tão ajustada, criou o universo inteiro — para mostrar a bondade, sabedoria e potência divinas — de maneira tão proporcionada, assim como também cada uma de suas partes — e não só cada uma das partes do universo, mas também as partes de cada um dos seres vivos — de uma maneira tão adequada a cada uma de suas funções particulares e de seus fins, que quem pode não ver que tudo isso foi realizado e executado pela providência divina, como é evidente a todas as luzes segundo a definição de 'providência'?
3. Se perguntarmos que tipo de ato de potência é a providência, devemos dizer que, acima de tudo, é um ato de entendimento prático — ao haver um plano ou ideia de uma ordem de coisas em relação a um fim —, mas que acrescenta o propósito de ordenar a execução dessa ordem, sendo este um ato da vontade que completa o plano perfeito da providência. Portanto, quando Damasceno (De fide orthodoxa, lib. 2, cap. 29) diz que a providência é a vontade de Deus pela qual todas as coisas existentes recebem o governo que lhes convém, devemos entender que se trata da vontade ou do ato e determinação da vontade de Deus como aquilo que completa o plano da providência; no entanto, não devemos negar que, acima de tudo, inclui o próprio plano ou a ideia de governar as coisas dessa maneira, sendo isso exigido pela determinação da vontade, para que se possa completar o plano da providência divina. O Ferrariense (Commentaria in libros contra gentes, lib. 3, cap. 64) afirma que o ato do entendimento apenas, na ausência do propósito executor, também pode ser chamado de 'providência', se ampliarmos o significado do termo 'providência'; no entanto, esse termo geralmente é entendido como abrangendo o propósito de ordenar a execução da ordem concebida. Isso é o que temos a dizer em relação ao primeiro ponto proposto.
4. Quanto ao segundo ponto, a conclusão de Santo Tomás é a seguinte: Deus possui providência, mas não para se ordenar ao seu próprio fim, pois isso é próprio da providência e da prudência monástica, mas sim para ordenar e dirigir as criaturas aos seus próprios fins, o que é próprio da providência e prudência civil, régia e monárquica. O primeiro é um dogma de fé e é evidente pelo que lemos em Sabedoria, XIV, 3: «Tua providência, Pai, governa tudo desde o princípio»; e pelas palavras de Mateus, VI, 26-30: «Observai como as aves do céu não semeiam, nem ceifam, nem armazenam em celeiros, e vosso Pai celestial as alimenta... Portanto, se a erva do campo... Deus assim a veste, não fará muito mais por vós, homens de pouca fé?»; isso mesmo lemos em muitos outros testemunhos das Sagradas Escrituras.
Santo Tomás demonstra isso da seguinte forma: a ordem das coisas em relação aos seus fins particulares e ao fim comum a todas procede de Deus, como já demonstramos anteriormente. Mas Deus é a causa das coisas por meio de seu entendimento e vontade. Portanto, o plano e a ideia da ordem das coisas em relação aos seus fins particulares preexiste na mente divina. Mas este plano e esta ideia da ordem das coisas em relação aos seus fins é a providência; pois a providência é a parte principal da prudência, cuja tarefa própria é ordenar as coisas em relação a um fim, como ensina Aristóteles (Ética a Nicômaco, livro 6, capítulo 8 e 12). Portanto, temos que atribuir a Deus uma providência.
O segundo ponto é demonstrado da seguinte forma: Deus não tem um fim ao qual se ordena, já que nem Ele mesmo, nem aquilo que possui formalmente, pode ser considerado efeito de nenhuma maneira. Por isso, a providência divina não é monástica —mas idêntica à que encontramos no rei e monarca— e tem como objeto as criaturas, às quais dirige para seus fins. Além disso, o quarto argumento com o qual (em nossos Commentaria in primam D. Thomae partem, q. 2, a. 3) demonstramos com toda clareza a existência de Deus a partir da ordem perfeitíssima de todas as coisas para seus fins e a partir da providência que, em seu próprio efeito, brilha de modo admirável em todo este universo, após acrescentarmos o que dissemos depois naquele mesmo lugar, demonstra claramente que Deus possui uma providência pela qual governa todas as coisas criadas.