Concordia do Livre Arbítrio - Parte III 2

Parte III - Sobre os auxílios da graça

Disputa XXXVII: De que modo Deus concorre com nosso livre arbítrio nos atos sobrenaturais

1. Na disputa 8 e nas seguintes, explicamos com bastante clareza até que ponto a concessão das graças prevenientes depende tanto do nosso livre arbítrio quanto do impulso da Igreja, embora Deus as conceda apenas em virtude de sua misericórdia, de maneira puramente gratuita e não por causa de um bom uso do livre arbítrio; no entanto, Ele não as distribui a todos de forma igual.
Além disso, explicamos que Deus está sempre disposto a fazer —para todo aquele que o deseje— o que está em Seu poder para conceder essa graça na medida mínima necessária e suficiente para alcançar o dom da justificação e a vida eterna.
Da mesma forma, explicamos que é dogma de o fato de que essas graças prevenientes ─mesmo quando Deus incita por meio delas, em ato, o nosso livre arbítrio a crer, ter esperança, amar ou se arrepender da maneira requerida─ não impõem ao livre arbítrio nenhuma necessidade, porque o livre arbítrio permanece livre para discordar da graça que o incita dessa maneira e, por isso, não crer, nem ter esperança, nem amar, nem se arrepender como é convidado, rejeitando assim a graça excitante para sua própria perdição; essa foi a definição do Concílio de Trento (sessão 6, capítulo 5, cânone 4).
2. Isso posto, como nosso livre-arbítrio é livre ─quando Deus o toca e o incita por meio do auxílio da graça preveniente─ para conceder seu consentimento ou sua rejeição e, assim, realizar ou não o ato de crer, de ter esperança ou de se arrepender, certamente, é evidente, em primeiro lugar, que nosso livre-arbítrio e a graça preveniente são duas partes de uma única causa total do ato de crer, de ter esperança ou de se arrepender da maneira necessária para alcançar a salvação e, em segundo lugar, que cada um desses atos depende da influência tanto do livre-arbítrio quanto da graça preveniente. Mas do livre-arbítrio dependerá que substancialmente esses atos sejam atos de crer, de ter esperança ou de se arrepender. E da influência da graça preveniente dependerá que sejam sobrenaturais e como é necessário que sejam para alcançar a salvação. Por essa razão, qualquer um desses atos procede em sua totalidade tanto do livre-arbítrio quanto da graça preveniente, ou seja, de Deus por sua influência sobre o próprio ato por meio dessa graça como instrumento sobrenatural; no entanto, não procede de nenhum dos dois entendidos como causa total e íntegra, mas como partes de uma causa total.
3. Mas, quando dizemos que esses atos procedem de Deus por Sua influência sobre o próprio ato através de Sua graça preveniente como instrumento sobrenatural, não se deve entender que a graça preveniente seja um instrumento divino tal que Deus o manipule —com uma nova moção ou influxo— para que coopere com o livre-arbítrio e produza o efeito sobrenatural da maneira como muitos afirmam que Deus manipula os sacramentos de modo sobrenatural, com o objetivo de que sejam instrumentos da graça, semelhantes às causas naturais; não faltou quem pensasse que eu pretendia dizer tal coisa aqui. Pelo contrário, é preciso entender que esse instrumento deve ser incluído no conjunto dos instrumentos em virtude de cujo gênero, conforme explicamos na disputa 26, agem como virtude íntegra de uma causa principal, por meio da qual essa causa influencia o efeito; assim, por exemplo, a eficácia impressa no sêmen é a virtude íntegra por meio da qual o animal de quem o sêmen fluiu se reproduz; o calor seria a eficácia total por meio da qual o fogo produz outro fogo; consequentemente, como dissemos no lugar mencionado, esses instrumentos não precisam, para agir, de uma nova moção ou aplicação por parte da causa principal. Mas, como a graça preveniente é acidente e não substância, não pode ser causa principal, nem pode agir como sujeito, mas apenas como meio; por isso, é instrumento, mas apenas de uma causa principal, que é Deus, sendo dEle que procede; e, como é de ordem sobrenatural e, por isso, é sobrenatural para o homem que a recebe, com toda razão a denominamos 'instrumento sobrenatural'.
4. É bastante evidente que a graça preveniente é algo que difere dos atos para os quais Deus dirige o livre-arbítrio por meio dela, embora não falte quem pense o contrário. Pois esses atos procedem do livre-arbítrio, mas não a graça preveniente. Da mesma forma, essa graça é causa eficiente —junto com o livre-arbítrio— desses atos; mas a causa eficiente é algo que difere de seu efeito. Além disso, essa graça pode se tornar ineficaz, se o livre-arbítrio não consentir, nem cooperar nos atos para os quais dirige o homem e para os quais Deus a concede; portanto, é algo que difere totalmente desses atos.
5. Como o livre arbítrio e a graça preveniente são causas segundas dos atos de crer, ter esperança e arrepender-se da maneira requerida, nenhuma causa segunda, mesmo que seja sobrenatural, pode fazer algo a menos que seja assistida pela influência simultânea e imediata de Deus através de Seu concurso geral; isso ocorre porque, da mesma forma que a conservação de todo efeito depende imediatamente de Deus, assim também sua existência depende dEle, como explicamos na disputa 25 e nas seguintes; por tudo isso, é algo muito claro que, para que o livre arbítrio produza junto com a graça preveniente qualquer um desses atos, é necessário que Deus, por meio de Seu concurso geral, também influencie junto com eles de maneira imediata na produção do efeito. Por essa razão, acontece que, embora qualquer um desses três atos seja uma ação única à qual deve ser atribuído um termo próprio, como explicamos em nossos Commentaria in primam D. Thomae partem, q. 12, art. 2 —, no entanto, cada um deles se divide em três partes de uma única causa total da qual procede o ato em sua totalidade, de tal modo que o ato em sua totalidade também procede de cada uma de suas partes por parcialidade causal como costuma ser dito —, embora de maneira distinta.
Pois o ato procede de Deus —através de sua influência apenas por meio de seu concurso geral— como causa universal; portanto, daí não se segue que esse ato seja o assentimento da ou a dor pelos pecados antes que o ato oposto ou um ato de qualquer outra potência.
Ao influxo do livre arbítrio como causa parcial —juntamente com o conhecimento e tudo o mais necessário para a produção substancial do ato— se deverá que, em termos substanciais, o ato seja o assentimento da ou a dor pelos pecados, antes de qualquer outro ato distinto.
Ao influxo da graça preveniente, ou seja, a Deus ─na medida em que, juntamente com o livre-arbítrio, Deus influencia o ato por meio dessa graça como instrumento seu─ se deverá que este ato seja sobrenatural e difira em espécie do ato puramente natural de crer ou lamentar os pecados, que o livre-arbítrio realizaria apenas com suas forças, se a graça preveniente não influísse simultaneamente com ele; por esta razão, este ato deve ao concurso de Deus através da graça preveniente o fato de ser disposição congruente, proporcionada e ajustada ao dom sobrenatural da justificação.
6. Antes de submeter esta questão a um exame mais aprofundado e lançar luz sobre ela, é possível que alguém se pergunte se, sem esses auxílios da graça preveniente e excitante com os quais Deus move antecipadamente e, por assim dizer, convida o livre-arbítrio, Deus poderia produzir em virtude de seu poder absoluto com o livre-arbítrio os atos de fé, de esperança e de penitência da maneira necessária para alcançar a justificação, influenciando imediatamente esses atos da mesma forma que influencia através de seu concurso geral sobre os atos puramente naturais, mas com outro influxo particular e consideravelmente maior.
7. A esta pergunta, deve-se responder que, sem dúvida alguma, Deus pode fazer tal coisa. Pois, da mesma forma que conforme explicamos em nossos Commentaria in primam D. Thomae partem, q. 12, art. 5, disp. 1 Deus pode fazer com que o entendimento do bem-aventurado contemple a essência divina sem participar da luz da glória, porque não implica contradição que, com Seu influxo particular e imediato sobre esta visão, Ele compense o influxo da luz da glória como causa eficiente sobre esta visão, assim também, como não implica contradição compensar o influxo com que a graça preveniente influi como causa eficiente sobre esses atos, Deus pode, em virtude de Seu poder absoluto e através de um influxo imediato tão grande, cooperar nesses mesmos atos com o livre-arbítrio, de tal modo que resultem exatamente iguais aos que ocorreriam se a graça preveniente os tivesse antecedido, especialmente se o livre-arbítrio pudesse produzir esses atos de modo substancial sem o auxílio da graça, como muitos Doutores escolásticos ensinam.