Jó 3

Depois disto abriu Jó a sua boca, e amaldiçoou o seu dia.
*
Jó passa de silêncio (Jó 2:13) para um lamento intenso. Esse padrão de lamento seguido de discurso é comum em textos de sofrimento no AT (comparar com Salmos e Lamentações).
E Jó, falando, disse:
Pereça o dia em que nasci, e a noite em que se disse: Foi concebido um homem!
*
Desejar nunca ter nascido aparece em outros textos bíblicos (Jeremias 20:14-18), mas aqui com força poética incomum. Reflete questionamento existencial radical.
Converta-se aquele dia em trevas; e Deus, lá de cima, não tenha cuidado dele, nem resplandeça sobre ele a luz.
Contaminem-no as trevas e a sombra da morte; habitem sobre ele nuvens; a escuridão do dia o espante!
Quanto àquela noite, dela se apodere a escuridão; e não se regozije ela entre os dias do ano; e não entre no número dos meses!
Ah! que solitária seja aquela noite, e nela não entre voz de júbilo!
Amaldiçoem-na aqueles que amaldiçoam o dia, que estão prontos para suscitar o seu pranto.
*
A menção de 'amaldiçoadores do dia' pode referir-se a: 1) mitos antigos sobre magias para amaldiçoar dias (como Enuma Elish babilônico), 2) profissionais que faziam lamentações fúnebres, ou 3) magos que acreditavam poder alterar destinos. A ambiguidade proposital mantém o caráter universal do lamento.
Escureçam-se as estrelas do seu crepúsculo; que espere a luz, e não venha; e não veja as pálpebras da alva;
Porque não fechou as portas do ventre; nem escondeu dos meus olhos a canseira.
Por que não morri eu desde a madre? E em saindo do ventre, não expirei?
Por que me receberam os joelhos? E por que os peitos, para que mamasse?
Porque já agora jazeria e repousaria; dormiria, e então haveria repouso para mim.
Com os reis e conselheiros da terra, que para si edificam casas nos lugares assolados,
*
'Reis... lugares assolados' - Paradoxo: mesmo grandes construtores acabam em ruínas. Arqueologia comprova que muitas construções reais da antiguidade foram abandonadas (ex: cidades hititas, palácios assírios).
Ou com os príncipes que possuem ouro, que enchem as suas casas de prata,
Ou como aborto oculto, não existiria; como as crianças que não viram a luz.
*
Comparação com aborto mostra radicalização do lamento. Na cultura hebraica, crianças não-nascidas não tinham status social (Eclesiastes 6:3-5), mas aqui a morte é preferida à vida de sofrimento.
Ali os maus cessam de perturbar; e ali repousam os cansados.
Ali os presos juntamente repousam, e não ouvem a voz do exator.
Ali está o pequeno e o grande, e o servo livre de seu senhor.
Por que se dá luz ao miserável, e vida aos amargurados de ânimo?
*
Questão teológica central: por que Deus mantém vivos os que desejam morrer? Desafia a noção de que vida é sempre bênção. Paralelos em Jonas 4:3 e Apocalipse 9:6.
Que esperam a morte, e ela não vem; e cavam em procura dela mais do que de tesouros ocultos;
Que de alegria saltam, e exultam, achando a sepultura?
Por que se dá luz ao homem, cujo caminho é oculto, e a quem Deus o encobriu?
Porque antes do meu pão vem o meu suspiro; e os meus gemidos se derramam como água.
Porque aquilo que temia me sobreveio; e o que receava me aconteceu.
*
Jó revela que seu pior medo (perda da proteção divina) se concretizou. Ironia trágica: sua retidão (Jó 1:1) não evitou o temido. Isso questiona a teologia da retribuição (bondade recompensada, maldade punida).
Nunca estive tranqüilo, nem sosseguei, nem repousei, mas veio sobre mim a perturbação.