Concordia do Livre Arbítrio - Parte IV 7

Parte IV - Sobre a presciência de Deus

Disputa LIII: Sobre as predefinições e a origem da certeza da ciência divina acerca dos futuros contingentes

Apêndice: Vamos dividir esta disputa em quatro partes, em prol de uma maior clareza e para que sua extensão não se torne cansativa.

Seção I: Opinião de outros autores sobre essas duas questões

1. Com o objetivo de introduzir e defender algumas predefinições de Deus ─dirigidas a todos os atos não malévolos do livre arbítrio─ que são tais que suprimem a liberdade do arbítrio para realizar esses atos, alguns contestam e tentam negar com todas as suas forças a ciência média que defendemos na disputa precedente e em outras anteriores a esta, que deduzimos a partir de seus próprios princípios e que confirmamos com testemunhos das Sagradas Escrituras, dos Santos Padres e até mesmo de escolásticos, embora não se refiram a ela com o mesmo nome.
2. Pois sustentam que, em geral, o fato de todas as coisas ─com exceção dos atos de pecado─ acontecerem com certeza ou não acontecerem com certeza, depende apenas da predefinição livre da vontade divina.
Por essa razão, eles pretendem sustentar que, da mesma forma que, de todas as coisas que procedem de Deus imediatamente e, igualmente, daquelas outras que, posteriormente, acontecem apenas por necessidade da natureza, Deus possui unicamente ciência puramente natural que antecede ao ato livre da vontade divina e ciência puramente livre que aparece posteriormente a esse ato —, assim também aconteceria com os futuros contingentes cuja raiz próxima de contingência é o livre-arbítrio criado, desde que não se trate de atos moralmente maus.
Por isso, afirmam que, do mesmo modo que as coisas que somente Deus produz de forma imediata, ou aquelas que, a partir dessas, seguem-se posteriormente por necessidade da natureza antes do ato livre da vontade divina, podem ser conhecidas de maneira puramente natural e apenas como coisas possíveis, uma vez que a predefinição divina lhes é acrescentada isto é, o ato livre da vontade divina, pelo qual Deus decide produzi-las ou influenciar nelas através de sua cooperação geral para que ocorra aquilo que delas se seguirá ─, então, na própria predefinição ou no ato livre de sua vontade, Deus as conhece livre e certamente como futuras. Do mesmo modo, Ele conhece, com ciência puramente natural e de maneira alguma, nem sequer hipoteticamente, com ciência média, da qual poderia carecer todas as coisas que dependem do livre-arbítrio criado angélico e humano e que não são moralmente más, independentemente de Deus cooperar com elas mediante um auxílio particular e sobrenatural ou apenas com um auxílio geral, antes da predefinição divina ou do ato livre da vontade divina pelo qual decide criar o arbítrio, colocá-lo em uma determinada ordem de coisas e circunstâncias, ajudá-lo de maneira natural ou sobrenatural, de uma forma ou de outra, e cooperar com ele. Além disso, como Deus predefiniu tudo isso, Ele conhece com certeza e com ciência livre somente em sua predefinição e em virtude dela que essas coisas acontecerão, pois a vontade ou predefinição divina de cooperar desse modo com o livre-arbítrio criado nada mais é do que a própria vontade divina e eficaz para que cada um desses futuros contingentes aconteça. Finalmente, a cooperação seja natural, seja sobrenatural pela qual Deus decide, por sua parte, cooperar desse modo no momento apropriado, é uma cooperação eficaz e, portanto, uma vez que a predefinição divina tenha ocorrido, o efeito não pode deixar de acontecer no sentido composto, embora afirmem que, no sentido dividido, possa não ocorrer.
Por essa razão, esses autores não apenas dividem os auxílios sobrenaturais de Deus naqueles que, por si mesmos e por sua própria natureza, são eficazes para mover o arbítrio criado e naqueles que, por sua própria natureza, são ineficazes para alcançar tal coisa, mas também dividem da mesma forma os auxílios e concursos naturais de Deus direcionados para os atos não maléficos do livre arbítrio. Assim, sustentam que do auxílio ou concurso eficaz de Deus seguem-se com certeza o consentimento e o efeito não maléficos do livre arbítrio, para os quais Deus move o livre arbítrio; no entanto, se o livre arbítrio não receber esse auxílio, embora receba um auxílio ou concurso ineficaz por si só, com certeza tal consentimento não ocorrerá. Além disso, sustentam que a intensidade do ato do livre arbítrio depende unicamente da intensidade do auxílio ou concurso eficaz através do qual Deus move o arbítrio para esse ato, de tal modo que toda a certeza, tanto de que esse ato ocorra aqui e agora, quanto de que seja mais ou menos intenso, se deverá à qualidade do concurso com que Deus move o arbítrio e coopera com ele.
Dessa forma, consequentemente, sustentam que toda a certeza da ciência divina sobre se esses futuros contingentes vão acontecer ou não depende unicamente da predefinição através da qual Deus decide cooperar de uma ou de outra maneira com o livre-arbítrio e movê-lo para atos não malvados. Pois, se Ele decide mover o livre-arbítrio com um auxílio eficaz por si mesmo, este consentirá e realizará com certeza e de maneira infalível o ato, porque a vontade divina possui eficácia para que este ato se produza, o qual, portanto, não pode ser frustrado; mas se decide não mover o livre-arbítrio dessa maneira, mesmo que tenha decidido movê-lo com um auxílio não eficaz por si mesmo, o livre-arbítrio não consentirá nem realizará este ato com certeza e de maneira infalível, porque uma vontade tal não possui eficácia para que este ato se siga. Por isso, como Deus predefiniu ou decidiu desde a eternidade possuindo apenas a ciência natural com a qual conhece todas as coisas possíveis que o livre-arbítrio pode realizar cooperar no momento de uma ou de outra maneira e mover ou determinar o arbítrio com eficácia isto é, com um auxílio ou concurso eficaz por si mesmo —, por isso, Ele conhece com certeza e infalivelmente em sua própria predefinição e em virtude de sua própria predefinição quais atos não malvados do livre-arbítrio vão se produzir, sem uma ciência média através da qual preveja o que aconteceria dada a hipótese de que quisesse mover e coadjuvar assim com o livre-arbítrio, porque, como Ele decidiu movê-lo e determiná-lo a agir dessa maneira, o livre-arbítrio não pode deixar de realizar em sentido composto este ato; além disso, o fato de que a moção e o concurso de Deus que Ele concederá no momento sejam eficazes não depende de nenhuma maneira do livre-arbítrio, isto é, como se estivesse no poder do livre-arbítrio fazer com que este concurso fosse eficaz ou ineficaz, consentindo ou não consentindo com ele.
3. Consequentemente, além de tudo o que dissemos, também sustentam que, antes da predestinação eterna, de acordo com nosso modo de entender, Deus procede a escolher —com vontade absoluta e eficaz— alguns para que desfrutem da beatitude eterna, antes de prever qualquer meio, ou uso, do livre arbítrio, assim como também nenhum futuro hipotético; da mesma forma, também antecederia à sua predestinação a rejeição dos demais em virtude, de modo semelhante, de sua vontade absoluta. Mas sustentam que a predestinação do adulto reside na predefinição ou vontade de conferir auxílios eficazes com os quais o arbítrio criado se determine de tal modo que, graças a uma certeza procedente da qualidade dos auxílios, execute as obras com certeza e persevere nelas para alcançar a vida eterna; daí que reduzam toda a certeza de que este bom uso do livre arbítrio ocorrer —e, consequentemente, a certeza de que estas boas obras vão se realizar e de que nelas o livre arbítrio perseverar até o final de sua vida— à eficácia dos auxílios e, por conseguinte, à predefinição ou vontade de Deus, eterna, absoluta e eficaz, de conferir estes auxílios em um momento do tempo. Daí procederia, segundo afirmam, toda a certeza e infalibilidade da ciência livre com que Deus conhece, posteriormente a esta predefinição, o bom uso do livre arbítrio e que estas obras vão se realizar, e não de uma ciência média através da qual Deus soubesse o que faria o livre arbítrio sob estes auxílios, como se uma vez que Ele, por sua parte, tivesse decidido ajudar deste modo, o livre arbítrio pudesse fazer o oposto e como se, no caso de que isto fosse acontecer, o tivesse previsto. Pois como negam que, sob estes auxílios ou uma vez que se produziu a predefinição eterna de Deus, o livre arbítrio possa agir de modo oposto em sentido composto, consequentemente, negam a ciência média através da qual Deus conheceria indiferentemente que uma coisa ou outra vai se realizar em virtude exclusivamente da liberdade do arbítrio criado, dada a hipótese de que, por sua parte, Deus quisesse auxiliá-lo deste modo.
4. Também ensinam, baseando-se no mesmo e irritando-se com aqueles que defendem o contrário, que Deus provê de modo particular todo ato ou efeito não maléfico do livre arbítrio, de tal forma que, com certeza e infalibilidade, este ato ocorra apenas em função da ordem estabelecida pela providência ou pela predefinição divina. Pois esses autores consideram que nenhum ato desse tipo embora seja puramente natural e indiferente em si mesmo em relação à bondade moral, assim como muito fácil de ser exercido pode ocorrer sem um concurso de Deus que seja eficaz por sua própria natureza para mover o livre arbítrio e determiná-lo a realizar esse ato; além disso, uma vez recebido esse concurso e a premovência de Deus, o arbítrio não pode em sentido composto deixar de consentir ou de realizar esse ato; por essa razão, sustentam que, como Deus provê desde a eternidade qualquer ato ou efeito desse tipo do livre arbítrio por meio dessa premovência eficaz e de sua determinação do livre arbítrio, portanto, em razão da predefinição pela qual confere essa premovência, cada um desses atos é seguro e infalível em virtude dessa predefinição ou ordem da providência divina.
5. Esses mesmos autores também se perguntam se Deus sabe que foram futuros contingentes coisas que nunca aconteceram, das quais as Sagradas Escrituras lembram que teriam ocorrido em virtude de alguma condição, que nem se deu, nem se dará; consequentemente, esses autores as denominam 'futuros contingentes condicionados'. Entre esses futuros estão os que mencionamos na disputa 49, a saber: o arrependimento dos tírios e sidônios, se entre eles tivessem ocorrido os milagres que aconteceram em Corazim e em Betsaida; a descida de Saul a Queilá e a entrega de Davi nas mãos de Saul, se Davi não tivesse fugido daquele lugar; e que alguns homens justos teriam caído em pecado mortal, se Deus não os tivesse salvado misericordiosamente da morte deste mundo mau.
6. Mas, após rejeitar como perigosa a opinião daqueles que negam que Deus conheça que esses futuros teriam acontecido sob determinada hipótese ou condição, esses autores defendem com razão o contrário. No entanto, acrescentam que, como esses futuros nunca acontecerão, Deus os conhece como possíveis, da mesma forma que todas as outras coisas que poderiam acontecer e nunca acontecerão. Pois, com o objetivo de fugir da ciência média, recusam-se a admitir um termo médio entre o futuro em termos absolutos e a pura possibilidade, apesar de que, nesta questão a menos que queiram cair na doutrina perigosa que rejeitam e que, segundo eles, contradiz manifestamente as palavras de Cristo em Mateus 11 é preciso admitir esse termo médio, a saber, um futuro que, em virtude de uma condição, se aproxima do futuro em termos absolutos mais do que se este futuro não acontecesse em virtude dessa condição e, dada essa hipótese, fosse apenas possível. De fato, como o arrependimento dos tírios e sidônios era tão possível quanto o dos habitantes de Corazim e de Betsaida, e Cristo assegurou que, dada a hipótese de que os mesmos milagres tivessem ocorrido em ambos os lugares, os tírios e sidônios teriam se arrependido apesar de que, dada essa mesma hipótese, o arrependimento dos habitantes de Corazim e de Betsaida não ocorreu, mas esse arrependimento esteve apenas dentro dos limites do possível —, por isso, é preciso admitir o termo médio que propomos entre o futuro em termos absolutos e a pura possibilidade; como, dada tal hipótese, essa foi a situação entre os tírios e sidônios devido a uma culpa e dureza do livre-arbítrio menores que as dos habitantes de Corazim e de Betsaida, por isso, Cristo preferiu os tírios e sidônios antes que os habitantes de Corazim e de Betsaida e disse que, no dia do juízo, os primeiros seriam tratados com menos rigor que os segundos. Acabei de dizer que devem admitir esse termo médio, se não quiserem cair na doutrina perigosa que rejeitam, porque os defensores dessa doutrina não negam que Deus conheça como possíveis esses futuros condicionados, mas apenas como termos médios entre os futuros absolutos e as puras possibilidades que estão no poder do arbítrio, ou seja, futuros não absolutos, mas relativos a uma hipótese que nunca se realizará.
7. Aqui deve-se observar que, como os autores com os quais disputamos atribuem toda a certeza de que haja coisas contingentes que acontecerão com toda segurança, ao concurso ou auxílio eficaz e à predefinição divina de conferir este concurso —deste modo, os milagres que ocorreram em Corazim e em Betsaida não teriam sido, por si só, auxílios eficazes, porque os habitantes dessas cidades não se converteram com eles—, por isso, consideram e sustentam —se atentarmos para suas palavras— que, dada apenas a hipótese mencionada, os habitantes de Tiro e Sidón também não teriam se convertido, mas o teriam feito no caso de que, ao mesmo tempo, Deus tivesse predefinido conferir-lhes um auxílio eficaz, de tal modo que, se também tivesse predefinido conferi-lo aos habitantes de Corazim e de Betsaida, estes também teriam se convertido. Daí que seja evidente que estabelecer concursos ou auxílios eficazes por si mesmos e defender as predefinições que acabamos de explicar —com o objetivo de fugir da ciência média— enfraquece e distorce as palavras de Mateus XI. Pois, se dada a hipótese de que esses milagres tivessem ocorrido em Tiro e em Sidón, os tírios e sidônios não teriam se convertido, a menos que —além desses milagres— Deus tivesse predefinido conferir-lhes outro auxílio eficaz por si mesmo que não lhes conferiu e com o qual os homens de Corazim e de Betsaida teriam se convertido, se, desse modo, Deus tivesse predefinido conceder-lhes esse auxílio, por que Cristo teria repreendido os homens de Corazim e de Betsaida, se os tírios e sidônios não precisavam, para se converter, de auxílios menores do que aqueles de que precisavam estes, e tanto uns quanto outros, no que dependia deles, segundo o parecer desses Doutores, eram iguais em relação à consecução ou não de sua conversão, sem que isso dependesse do arbítrio de uns em maior medida do que do arbítrio de outros? Mas ensinamos a explicação legítima dessas palavras na disputa 40, onde demonstramos que não depende da natureza dos auxílios da graça que estes sejam eficazes ou não, mas sim de que o arbítrio —movido e excitado por esses auxílios— queira ou não consentir e cooperar, como o Concílio de Trento define claramente.
8. Embora para nossa conversão sejam necessárias duas coisas, a saber, que Deus excite e mova nosso livre-arbítrio com o auxílio da graça sobrevinda e que o livre-arbítrio consinta e coopere, no entanto, como Deus está sempre esperando junto à porta para nos impulsionar e mover com o auxílio da graça ─no caso de que mover-nos não esteja em nós─ e como os milagres realizados diante de nossos olhos possuem uma força máxima para nos mover e nos fazer chegar ao consenso ─assim o demonstramos no lugar mencionado─, por esta razão, Cristo ─que está disposto a ajudar a todos por meio do auxílio da graça preveniente e cooperante─ repreendeu com razão os habitantes de Corazim e de Betsaida pelo fato de que, tendo-se produzido tantos milagres e sinais diante de seus próprios olhos, estes não haviam querido, por sua parte, conceder seu consenso para se arrependerem e se converterem, sendo este consenso o que, no entanto, tírios e sidônios teriam oferecido, se esses mesmos milagres tivessem sido realizados diante de seus próprios olhos.
9. Após terem lido nossas obras, os autores com os quais disputamos, além do modo como —como explicamos até aqui— Deus predetermina em particular —através de seu concurso ou auxílio eficaz— os atos do livre-arbítrio criado, também ensinam outro modo pelo qual Deus conheceria com certeza e infalibilidade quais futuros contingentes vão acontecer ou não, embora ao longo de sua obra não façam uso desse modo, aderindo-se apenas ao primeiro, que é o único que ensinaram anteriormente e segundo o qual explicam todo o resto.
10. Pois dizem que Deus, em virtude da compreensão de sua essência, na qual, como objeto primeiro, compreende todas as demais coisas —como nós dizemos— de maneira eminentíssima e em um grau de excelência superior ao que essas coisas possuem em si mesmas, conhece tudo o que realmente o arbítrio criado vai fazer, dada a hipótese de que Ele decida colocá-lo em uma determinada ordem de coisas e circunstâncias, dirigindo-o para que faça algo e permitindo que faça tal coisa em particular, mas sem determinar o próprio arbítrio em particular, concedendo-lhe liberdade para refrear o ato ou inclinar-se em um ou em outro sentido. No entanto, acrescentam que Deus sabe isso por ciência natural na essência e nas ideias que, de maneira natural, representam diante dEle todas as coisas que —não como possíveis, mas também em seu ser futuro— o arbítrio criado vai realizar. Pois como, segundo dizem, dada a hipótese de que o arbítrio seja criado e colocado em uma ou em outra ordem de coisas e de circunstâncias, vai se dar uma das duas partes da contradição de qualquer futuro contingente que esteja no poder do arbítrio, sem que seja este o momento em que em Deus aparece a ideia através da qual, de maneira natural, ao entendimento divino se representa esta parte da contradição, por isso, teria que se admitir que esta ideia estaria em Deus desde a eternidade, com anterioridade ao ato livre de sua vontade, na medida em que em sua própria essência —enquanto anterior, segundo nosso modo de entender, a este ato— estariam todas as coisas em grau eminente, incluídos os futuros contingentes em seu ser futuro.
11. Embora tudo isso tenha sido retirado de nossa doutrina, variando apenas algumas coisas, no entanto, como afirmam corretamente, o que dizem está longe dela. Mas na medida em que tudo isso difere dela, parece ter sido pensado para fugir de nossa ciência média e, por essa mesma razão, suprimem a liberdade de arbítrio que parecem defender, quando renunciam às predefinições por meio de um concurso eficaz de Deus que determinasse o arbítrio em particular e, consequentemente, o deixam livre para se inclinar no sentido que quiser.
12. Em primeiro lugar, parece que, segundo esta doutrina, uma das duas partes da contradição em relação aos futuros contingentes que dependem de nosso livre-arbítrio seria verdadeira de maneira determinada antes que esses futuros acontecessem e, por essa razão, a Deus se representaria de modo natural em uma ideia ou em sua essência divina que esta parte vai se dar de maneira determinada, sendo isso algo que, na disputa anterior, rejeitamos como contrário à doutrina de Aristóteles e ao parecer comum dos Doutores, assim como oposto à própria natureza dos futuros contingentes, pela qual cada um deles pode acontecer ou não indiferentemente, como demonstramos em nossos comentários ao De interpretatione (cap. 9). Assim, não é possível entender de que modo, em relação ao próprio livre-arbítrio, poderia se dar a outra parte da contradição e como poderia ser livre o próprio arbítrio, de tal modo que realmente pudesse fazer uma coisa ou a outra indiferentemente.
13. Em segundo lugar, podemos argumentar assim: Ou a ideia divina representa que o livre-arbítrio criado vai realizar uma das duas partes da contradição, dada a hipótese de que seja criado em uma ordem determinada de coisas e de circunstâncias, porque o arbítrio, em razão de sua liberdade, se inclinará para ela ─podendo representar essa ideia a parte oposta, se o arbítrio, como está em seu poder e em razão de sua mesma liberdade, fosse se inclinar para a parte oposta─, ou então essa ideia não representa isso assim, mas de maneira totalmente natural, ou seja, como se não pudesse representar de modo algum a parte oposta e, consequentemente, o arbítrio estivesse determinado a fazer tal coisa.
Se supõem o primeiro, como o conceito da ideia divina e o conceito da ciência divina que corresponde a essa ideia são idênticos, então terão que admitir a ciência média da qual fogem e que tantas vezes negam, sem a qual a liberdade do nosso arbítrio não pode ser preservada. Pois, assim como essa ideia pode representar o contrário e realmente o representaria, se o arbítrio criado, como está em seu poder, fosse fazer o contrário, assim também Deus saberia o contrário por meio da ciência que corresponde a essa ideia e que precede ao ato livre de Sua vontade, apesar de que essa ciência seja natural a Deus enquanto distinta da livre, embora não o seja enquanto distinta da que é inata a Deus de tal modo que, por meio dela, saberia tal coisa, como se de modo algum pudesse acontecer o contrário, assim como também que Deus soubesse o contrário por meio dela.
Mas, se supuserem o segundo, a saber, por meio da ideia ─por exemplo, do consentimento de Pedro em fornicar─ a Deus se representaria de maneira natural que este consentimento vai ocorrer ─como se fosse totalmente inato a Deus representar-se-lhe este consentimento de tal modo que esta representação não pudesse de forma alguma deixar de ocorrer e, consequentemente, o arbítrio de Pedro estivesse determinado a conceder este consentimento, que não poderia deixar de ocorrer─, como salvaguardarão a liberdade de Pedro para não pecar? O mesmo terá que ser dito sobre os demais atos livres de Pedro.
14. Além disso, algo nessa opinião que também não me agrada, a saber: que as ideias representariam diante de Deus as coisas em seu ser futuro antes do ato livre da vontade divina. Pois a ideia representaria em seu ser possível a coisa da qual é ideia, assim como o modo em que pode ser produzida; representaria como possível a própria futuração —ou existência— dessa coisa, assim como o modo em que pode alcançar o ser em ato exercido. As coisas alcançariam o ser de existência através da ciência do artífice determinada por sua vontade livre, para colocar em execução as coisas de acordo com a ideia e a ciência mencionadas. Por isso, nenhuma dessas coisas seria conhecida como futura, exceto na vontade livre do artífice, embora antes de sua vontade livre fosse conhecida como futura hipoteticamente, no caso de o artífice querer executá-la. Mas quando algumas coisas dependem de dois artífices livres, como as que são produzidas em virtude do arbítrio criado angélico ou humano, dependerão de Deus —que coloca o arbítrio neste ou naquele ordem e quer cooperar com ele de um ou de outro modo— e ao mesmo tempo do influxo do arbítrio criado; por isso, para conhecê-las como futuras hipoteticamente, será necessário que ocorra a determinação livre das duas vontades. Em virtude da perfeição infinita e ilimitada de seu entendimento e de sua compreensão eminentíssima, por meio da qual compreenderia em sua essência o arbítrio criado com uma profundidade muito maior do que a que pode ser alcançada compreendendo-o em si mesmo, Deus conheceria a determinação do arbítrio criado antes que ela ocorresse; consequentemente, dada a hipótese de que Deus queira colocar o arbítrio em um ou outro ordem determinado de coisas e de circunstâncias, saberá para qual sentido o arbítrio se inclinará em razão de sua liberdade. Também devo advertir o seguinte: como as entidades e existências dessas coisas seriam totalmente idênticas —seja apreendidas como possíveis, seja apreendidas como existentes em ato—, para compreendê-las não seria necessário conhecer em seu ser futuro o que cai sob a potência das mesmas. Assim, Deus não não teria se compreendido a si mesmo, se tivesse decidido não criar nada, mas agora também não se compreenderia, porque não poderia conhecer em seu ser futuro todas as coisas que caem sob sua onipotência; por isso, para compreender tais coisas, a Deus bastaria conhecer em seu ser possível todas as coisas que pode fazer e as existências de cada uma, como dissemos em nossos Commentaria in primam D. Thomae partem.
15. Esses mesmos autores também ensinam um terceiro modo pelo qual Deus saberia com certeza —também antes do ato livre de sua vontade— quais atos contingentes vão ocorrer. Pois, como dizem, nesse momento anterior e por meio da ciência que precede ao ato de sua vontade, Deus compreenderia sua essência, seu poder e sua vontade; por isso, nesse momento, Ele saberia de que maneira sua vontade se determinaria e, consequentemente, saberia quais atos contingentes realmente ocorreriam e quais ocorreriam sob a hipótese de que Ele quisesse determinar outra coisa. Isso implicaria conhecer não apenas os atos contingentes que realmente ocorreriam, mas também os atos condicionados, entre os quais estariam incluídos o arrependimento dos tírios e sidônios, a descida de Saul a Queilá e a entrega de Davi nas mãos de Saul.
16. Demonstração: A vontade divina seria —por assim dizer— guiada pelo entendimento divino e pelas razões eternas de sua sabedoria infinita, na medida em que, nas ideias de Deus, como artífice supremo, estariam contidas e brilhariam todas as coisas, também consideradas em termos de ser futuro. Por esse motivo, embora as coisas futuras contingentes não possuíssem estabilidade —como coisas que realmente vão acontecer— antes do decreto livre da vontade divina, nem pudessem ser conhecidas como realmente futuras, exceto em relação a esse decreto, no entanto, na medida em que, nesse momento anterior, estariam contidas e brilhariam nas razões ideais e esse decreto seria compreendido e conhecido como futuro após esse momento, certamente, nesse momento anterior, se saberia quais atos contingentes realmente ocorreriam em virtude desse mesmo decreto ou da determinação livre da vontade divina. Pois se, nesse momento anterior, não se conhecesse essa determinação —nem, portanto, quais atos contingentes realmente ocorreriam em virtude dessa determinação—, nesse momento anterior, a ciência de Deus não seria abrangente, universalíssima e perfeita, porque, nesse momento e com essa ciência, algo se ocultaria de Deus que Ele saberia posteriormente; mas isso não se pode dizer da ciência divina nesse momento anterior.
17. Em primeiro lugar, aqueles que dizem isso não podem negar que Deus possua uma ciência média dos futuros contingentes em razão do decreto da vontade divina e na medida em que os futuros contingentes dependem desse decreto, a menos que pretendam negar que Deus possua liberdade de arbítrio em relação ao seu decreto. De fato, a ciência pela qual Deus sabe anteriormente ao decreto de sua vontade em que sentido este decreto se determinará e, consequentemente, quais atos contingentes ocorrerão em virtude dessa determinação, sem dúvida, poderia não estar em Deus, porque este decreto poderia ter-se determinado de outra maneira ou Deus poderia ter decidido não criar absolutamente nada; e se isso tivesse acontecido sendo tal coisa possível —, Deus não teria possuído essa ciência. Por essa razão, embora essa ciência tanto da determinação de seu decreto, quanto dos futuros que dependem dele fosse natural a Deus, na medida em que distinta da livre, porque antecederia ao ato livre da vontade divina, no entanto, seria inata a Deus de tal modo que não poderia deixar de existir e, consequentemente, seria ciência média, da qual, segundo os autores com os quais disputamos, Deus careceria anteriormente ao ato livre de sua vontade. Observe-se que, como essa ciência não apenas antecederia a todo ato da vontade divina, mas também seria um conhecimento que por assim dizer iluminaria e guiaria essa vontade para a volição enquanto lhe mostra o objeto, tanto aquele para o qual a vontade pode ser conduzida de maneira natural, quanto também aquele, ou aqueles, para os quais pode dirigir-se livremente —, de modo algum poderia ser livre, mas deveria ser totalmente natural, na medida em que distinta da livre. 18. Em segundo lugar, também não consideramos correto esse parecer, quando seus autores afirmam que a ideia divina contém a representação dos futuros contingentes em seu ser futuro, porque, como dissemos, tanto suas entidades, quanto suas existências, em termos ideais, se representam e se conhecem como possíveis incluindo de que modo possam alcançar o ser —, mas não como futuras, porque isso dependeria da determinação da vontade do artífice, que é posterior à ideia, sendo as ideias posteriores à representação. Além disso, a ideia não pode representar a determinação da vontade divina: porque não uma ideia da vontade divina e da determinação desta, mas unicamente das criaturas; e porque a vontade divina permanece em si mesma indiferente e livre para determinar-se a si mesma no sentido que quiser e, consequentemente, anteriormente a essa determinação, em Deus não há, nem pode haver, algo que represente em que sentido deva determinar-se sua vontade. Como não uma natureza superior a Deus que o contenha de modo eminentíssimo, à maneira como Ele contém qualquer arbítrio criado, por isso, não acontecerá que, assim como Ele mesmo por causa da superioridade infinita de seu conhecimento sobre a entidade e a perfeição de qualquer arbítrio criado e por causa do modo eminentíssimo em que o compreende sabe em que sentido se inclinará o arbítrio criado em razão de sua liberdade, também Ele mesmo ou qualquer outro a conhecer, anteriormente à determinação de sua vontade, em que sentido se inclinará essa vontade. Isso não é necessário para poder dizer que, nesse momento anterior, Deus se compreende a si mesmo, porque para compreender-se a si mesmo basta que saiba todas as coisas às quais podem estender-se sua potência, seu entendimento e sua vontade; por isso, basta que em sua vontade saiba, a respeito de qualquer objeto, em quantos sentidos pode determinar-se. Pois do mesmo modo que, por não conhecer posteriormente que Ele se tenha determinado das múltiplas maneiras que estiveram em sua potestade a respeito de distintos objetos e teria conhecido cada uma delas, se assim se houvesse determinado —, não deixa de compreender-se a si mesmo, porque sabe que todas elas foram possíveis e teriam tido lugar, se Ele houvesse querido determinar-se nesse sentido, tampouco nesse momento anterior deixa de compreender-se a si mesmo por não conhecer, anteriormente à sua determinação, em que sentido vai determinar-se, porque conhece todos os sentidos em que pode determinar-se e todos eles estão em sua potestade ou arbítrio, que nesse momento pode reconhecer-se como livre e sob nenhum conceito determinado a respeito de qualquer objeto suscetível de criação.
19. Além disso, como dissemos na disputa anterior, não entendo de que modo Deus poderia conhecer, antes da determinação de sua vontade, em que sentido esta se determinaria e, posteriormente, determinar-se livremente e não de maneira necessária, porque esse conhecimento seria infalível, certo —pois é conhecimento divino— e natural, na medida em que distinto do conhecimento livre, como explicamos anteriormente, pois antecederia a todo ato livre da vontade divina e seria um ato que —por assim dizer— iluminaria e guiaria a vontade divina, em um princípio, para a volição, que, em consequência, não poderia ser um ato ordenado pela vontade, nem livre, mas necessário. Também não entendo como poderia acontecer que um mesmo sujeito conhecesse previamente, em virtude desse tipo de conhecimento certo e natural, a determinação futura de sua vontade e, posteriormente, se determinasse nesse sentido livremente e não de maneira necessária e, em consequência, como poderia acontecer que todas as coisas não ocorressem por necessidade da natureza, na medida em que procedentes e dependentes de um conhecimento e determinação tais da vontade.
20. Ao argumento apresentado pelos defensores da opinião contrária, devemos dizer o seguinte: Para que o entendimento divino e as razões ideais ─por assim dizer─ guiem a vontade divina em direção à volição, não é necessário que as ideias representem as coisas em seu ser futuro, nem que o conhecimento do entendimento divino as conheça em seu ser futuro, mas basta que as ideias as representem em seu ser possível e de acordo com o modo como podem ser produzidas, e que o conhecimento do entendimento também as reconheça assim; por essa razão, devemos negar que as coisas futuras brilhem ou sejam representadas de outra forma pelas ideias divinas, ou que a ciência divina as conheça nesse momento anterior.
Mas, quanto ao que se acrescenta sobre a compreensão do decreto naquele momento anterior e sobre a compreensão, universalidade e perfeição da ciência divina nesse mesmo momento, devemos dizer o seguinte: Para compreender algo, não é necessário conhecê-lo em seu ser futuro ─pois, desse modo, Deus não compreenderia as coisas que nunca acontecerão─, mas basta conhecer todos os seus modos possíveis, sendo isso o que Deus conhece de seu decreto livre naquele momento anterior; pois Deus conhece toda a virtude, entidade e perfeição de cada coisa, assim como todos os modos em que pode determiná-la, sabendo no mesmo agora da eternidade que cada um deles acontecerá ou não, na medida em que, posteriormente ─segundo nosso modo de entender, baseado na realidade das coisas─, queira determiná-la assim ou não, sendo isso suficiente para a compreensão dessa coisa, especialmente em função do estado em que ela é considerada anteriormente ─segundo nosso modo de entender─ a que Deus decida seu decreto. Pois, da mesma forma que não é absurdo pensar que Deus, naquele momento anterior ─segundo nosso modo de entender─, não decida o próprio decreto ou o ato de sua vontade ─não apenas enquanto pode ser considerado livre, mas também natural─ de amar a si mesmo, com maior razão também não será absurdo pensar que, naquele mesmo momento anterior, sua ciência não possa ser considerada livre ou um conhecimento do sentido da determinação livre do decreto, mas apenas dos sentidos em que poderia ocorrer sua determinação livre, principalmente porque o fato de a determinação do decreto ocorrer em um sentido ou em outro não acrescentaria mais que uma relação de razão, como deixaremos bem claro em nossos Commentaria in primam D. Thomae partem; e essa relação também seria conhecida naquele momento anterior como possível e futura, mas não em termos absolutos, mas no caso de a vontade querer se determinar nesse sentido.
Aqui deve-se observar que essa anterioridade —segundo nosso modo de entender, baseado na realidade das coisas— da qual falamos, não é uma anterioridade no sentido de que, como sustenta Escoto, haja um instante de natureza ou de tempo em que uma coisa ocorra e outra não —mais adiante explicaremos em nossos Commentaria in primam D. Thomae partem que isso é falso—, mas podemos falar de anterioridade porque, devido à dependência que o ato da vontade tem em relação ao conhecimento do entendimento —e não o contrário—, concebemos uma coisa pressupondo-a, quando ainda não concebemos outra, apesar de que, na realidade, sempre estejam unidas; mais ainda, o ato do entendimento divino e o da vontade de Deus, incluindo os demais atributos divinos, se incluem mutuamente, como explicaremos quando abordarmos a questão da Santíssima Trindade. Por essa razão, assim como conceber os atributos separados entre si não faz com que algum deles careça realmente da perfeição dos outros, assim também, nesta questão, conceber a ciência divina —como requisito para o ato posterior da vontade— ainda separada do conhecimento da determinação desse mesmo ato, não faz com que em algum momento essa ciência careça realmente desse conhecimento, como se em algum momento Deus possuísse ciência natural sem que esta pudesse ser considerada simultaneamente ciência livre.
21. Para responder completamente ao argumento, devemos acrescentar o seguinte: A ciência divina não é mais universal ou mais perfeita pelo fato de que, graças a ela, se saiba que algo vai acontecer; de outra forma, Deus não possuiria alguma perfeição ou a própria ciência careceria de universalidade, porque não se produziriam muitas coisas cuja produção Deus poderia decidir; e se assim o fizesse, em algum momento saberia que essas coisas vão acontecer, apesar de que em outro momento não as tivesse conhecido como futuras. Portanto, como Deus conhece como possíveis coisas que não vão acontecer ─mas também como futuras, se Ele quisesse decidir que acontecessem─ e como em Deus conhecer algo como futuro não implica uma perfeição maior ou diferente que conhecê-lo como possível e futuro, se Ele mesmo quisesse ou tivesse querido decidir assim, por esta razão, tanto se Deus conhece algo futuro em termos absolutos, como se não o conhece deste modo, mas como possível e futuro hipoteticamente, sua ciência não possuirá uma perfeição e universalidade menores. Acrescente-se que, na realidade, à ciência divina natural sempre permanece unida a ciência livre, como dissemos, embora possamos conceber uma antes que a outra e sem esta outra.

Seção II: No qual impugnamos a opinião anterior

1. Os autores da opinião que apresentamos no parágrafo anterior não podem, nem parecem negar que Deus possua uma ciência média em relação aos atos moralmente maus do livre-arbítrio.
2. Em primeiro lugar: Porque, com relação a esses atos, não estabelecem um concurso divino eficaz, mas atribuem —e com razão— o fato de que esses atos ocorram à determinação e ao influxo próprio do livre arbítrio, em virtude do qual —graças à sua liberdade— o livre arbítrio determinaria —com o objetivo de realizar esses atos— o concurso geral de Deus, que é indiferente por si mesmo e, por isso, dele podem seguir-se atos muito distintos. Por essa razão, assim como nós, não atribuem os pecados —nem mesmo considerados materialmente— a Deus e à sua influência através de seu concurso geral, mas ao próprio arbítrio como causa própria e particular dos mesmos, como é evidente pelo que dissemos no membro anterior e na disputa 27. Pelo contrário, para os atos moralmente maus não estabelecem um concurso geral divino tal que, por meio dele, Deus possa mover a causa e aplicá-la a agir, mas tão somente um concurso geral —junto com a causa— e imediato sobre o efeito desta, como explicamos na disputa 27.
3. Em segundo lugar: Porque, com relação a esses mesmos atos, não estabelecem predefinições de Deus, como vimos no item anterior, porque Deus não determina o arbítrio criado a realizar esses atos, mas o próprio arbítrio se determina a realizá-los em razão de sua liberdade e de sua maldade.
4. Em terceiro lugar: Porque, enquanto os testemunhos dos Santos Padres, com os quais, na disputa anterior, defendemos a ciência média, ensinam que os atos de nosso livre-arbítrio não vão ocorrer porque Deus os previu que assim seria, mas, ao contrário, Deus os previu porque ocorrerão em virtude da liberdade do livre-arbítrio, no entanto, esses autores consideram que esses testemunhos seriam verdadeiros em relação aos atos de pecado, porque Deus não os predefine, nem determina, nem move o livre-arbítrio para eles, ao contrário dos atos não malévolos do livre-arbítrio, que ocorrem, segundo dizem, porque Deus os predefine; dessa forma, em virtude dessa predefinição seria certo que ocorreriam e não em virtude de uma ciência média através da qual a altura do entendimento divino os pressuporia com certeza, dada a hipótese de que o livre-arbítrio fosse criado e colocado em uma determinada ordem de coisas e circunstâncias, sem outra predefinição.
5. Portanto, como a ciência com que Deus previu quais pecados qualquer arbítrio criado cometerá é certa, e esses autores não podem atribuir essa certeza à predefinição da vontade divina e a uma determinação pela qual a vontade divina determinasse o arbítrio criado a realizar esses atos ─sendo isso evidente pelo que dissemos, baseando-nos na própria opinião desses autores─, e como não outra coisa a que essa certeza possa ser reduzida, exceto à certeza da ciência média ─através da qual, em virtude da altíssima compreensão do arbítrio criado e da eminente compreensão divina, Deus conheceu com certeza algo que em si é incerto e contingente, a saber, em que sentido o arbítrio se inclinaria em razão de sua liberdade, dada a hipótese de que seja colocado em uma ou outra ordem de coisas e circunstâncias, embora também soubesse o contrário, se o livre arbítrio, como está em seu poder, fosse refrear seu consentimento em cair no pecado ou escolher seu dissentimento─, por isso, daqui se segue que, com respeito aos atos dos pecados, parecem admitir a ciência média e assim o atestam muitas das coisas que ensinam referindo-se aos atos dos pecados.
6. Isso é assim, exceto que, talvez, pretendam reduzir —da mesma forma que aqueles que impugnamos na disputa 50— a certeza da ciência pela qual Deus sabe quais pecados serão cometidos, à certeza e infalibilidade do fato de que a vontade criada pecaria em relação à matéria de qualquer virtude porque a vontade divina não a determinaria eficazmente a agir bem, ou seja: como se Deus, em sua predefinição dos atos não maus para os quais determina o livre-arbítrio criado por meio de um concurso ou auxílio eficaz por si mesmo, observasse, com uma certeza proveniente do próprio objeto, tanto os atos não maus que o livre-arbítrio vai realizar, quanto também os pecados em que vai cair —por comissão e por omissão—, incluindo a intensidade ou remissão com que os cometa, assim como o momento temporal e as demais circunstâncias; como se, por isso, a vontade não pudesse evitá-los, mas, uma vez estabelecida essa predefinição dirigida apenas para os atos não maus, estivesse por si mesma determinada —segundo o modo mencionado— a pecar por comissão e omissão contra a reta razão e a lei de Deus; e como se à natureza de qualquer arbítrio criado, tanto angélico quanto humano, fosse inerente a seguinte condição, a saber, embora o arbítrio criado esteja na graça que o torna agraciado —sendo este o estado dos anjos e dos primeiros pais antes de cair em pecado—, sejam quais forem o momento do tempo, a ordem das coisas e as circunstâncias em que o arbítrio criado seja colocado, nesse instante o livre-arbítrio pecará por omissão e por comissão contra a reta razão e a lei de Deus, cometendo com a máxima intensidade de que seja capaz os pecados em que nesse instante possa cair por comissão e por omissão, se Deus não o retém e o afasta deles, determinando-o com seu concurso eficaz, de tal modo que seria necessário dizer que todo arbítrio criado se deixaria levar de maneira voluntária, mas por necessidade de natureza, para todos os pecados que pudesse cometer, deixando de cair neles apenas na medida em que fosse refreado e afastado da comissão dos mesmos com um auxílio eficaz para realizar atos não maus. De fato, segundo esse modo de explicação, tudo isso seria necessário para proteger a certeza da ciência de Deus em relação aos pecados futuros. Pois, se o livre-arbítrio não se deixa levar, em virtude de sua propensão inata e por necessidade de natureza, para os pecados de todo gênero em que, por comissão ou omissão, pode cair em qualquer instante e sob quaisquer circunstâncias —pois em seu poder estaria refrear-se de cair neles ou de cometer um ato pecaminoso de maneira mais ou menos intensa, assim como variar qualquer outra circunstância—, nesse caso, recorrendo apenas a esse modo de explicação, Deus não conhecerá com certeza e infalibilidade quais pecados, de que tipo e até que ponto culpáveis, serão cometidos, como é evidentíssimo por si mesmo. Leia-se o que objetamos na disputa 50 contra esse modo de explicação.
Sem dúvida, se, por um lado, Deus conhece todos os atos futuros não malvados do livre-arbítrio criado, porque, na ordem das coisas que decidiu criar apenas por sua livre vontade, predefiniu conceder ao livre-arbítrio para que realize esses atos uma cooperação eficaz por si só, sem a qual o arbítrio não poderia realizá-los e, uma vez concedida, não poderia deixar de realizá-los —, mas, por outro lado, conhece com certeza todos os pecados futuros, porque, como decidiu não conceder mais cooperações, nem outras cooperações eficazes para realizar atos não malvados, o próprio arbítrio cairá com certeza e infalivelmente nesses pecados, quando surgirem as circunstâncias em que, no decorrer do tempo, os cometa de tal modo que, uma vez estabelecida essa predefinição para que o arbítrio realize atos não malvados, não estaria no poder do arbítrio evitar esses pecados —, então não sei como a liberdade do arbítrio poderia ser preservada seja para realizar atos bons, seja para realizar atos maus, seja para realizar atos em si indiferentes e como poderia ser evitada uma necessidade fatal em relação a tudo isso; da mesma forma, também não sei como não seguiriam os outros absurdos gravíssimos que, na disputa 50, deduzimos dessa opinião e, portanto, por que a opinião contra a qual disputamos não deveria ser considerada um erro manifesto em matéria de fé. De fato, embora a espontaneidade e a voluntariedade do nosso arbítrio que os luteranos reconhecem e que a mula também possui permaneçam seguras na medida em que, nos atos não malvados, o arbítrio consinta e coopere de boa vontade com uma cooperação eficaz por si para mover suavemente o arbítrio a realizá-los e na medida em que, por sua propensão inata, o arbítrio caia em pecado a menos que receba a cooperação eficaz para os atos não malvados, que o impediria e evitaria que caísse em pecado —, no entanto, não entendo de que modo estaria em seu poder naquele momento não consentir e não cooperar com a cooperação eficaz para a realização do ato não malvado sendo isso necessário para que se possa falar de liberdade, de bem moral e de mérito e de que modo, na ausência da cooperação eficaz para o ato não malvado, poderia se refrear de cair em pecado, sendo isso necessário para que se possa falar de liberdade para pecar e do próprio pecado; consequentemente, seria contraditório que fosse pecado agir assim naquele momento.
Pelo contrário, não entendo como não seria necessário atribuir nossos pecados a Deus, como autor da natureza, por ter conferido ao arbítrio criado uma propensão tal para os pecados. Pois, da mesma forma que, devido às propensões e às forças que Deus confere aos agentes que agem por necessidade da natureza, a Deus são atribuídos os atos e efeitos desses agentes e, por essa razão, os filósofos denominam a obra da natureza 'obra da inteligência' e, consequentemente, de Deus, assim também, teríamos que atribuir os atos de nossos pecados a Deus, como autor da natureza, por ter introduzido no arbítrio criado essa propensão a cair em pecado.
Mas dizer que, em sentido dividido, está no poder do arbítrio não realizar um ato não malvado e não pecar na medida em que, se Deus não predeterminasse conceder seu concurso eficaz, o arbítrio não realizaria o ato não malvado e, se Deus concedesse o concurso eficaz para o ato não malvado, o arbítrio não pecaria —, sem dúvida alguma, não significa atribuir uma liberdade ao arbítrio criado, mas sim atribuir a Deus a liberdade de mover ou não mover o arbítrio para um ato não malvado e de detê-lo ou não de cair em pecado, da mesma forma que, quando se conduz a mula pela rédea em um ou outro sentido, a mula não tem liberdade, mas não assim o homem que a conduz em um ou outro sentido, como dissemos na disputa 50 e em outros lugares.
7. Se alguém sustenta que Deus conhece com certeza todos os pecados futuros de qualquer arbítrio criado na determinação livre de sua vontade divina —através da qual decide permiti-los—, porque, em sentido composto, resulta contraditório que Deus tenha decidido permitir algum pecado e que este não ocorra, como digo, se alguém sustenta tal coisa, deverá ter em conta que a permissão para cair em pecado —como diremos mais adiante nesta obra— supõe, por um lado, que se o livre arbítrio for colocado em uma ordem determinada de coisas e de circunstâncias, cairá em pecado, e, por outro lado, que Deus prevê que isso vai acontecer —a menos que auxílios maiores ou distintos ajudem o arbítrio— e que pode impedi-lo. Mas a vontade de permitir este pecado não seria outra coisa que, uma vez pressuposto tudo isso, não querer conferir outros auxílios que o impeçam; assim como a própria permissão não seria outra coisa que, no momento oportuno, não conferir outros auxílios que o impeçam; pois dizemos que alguém permite algo, quando, vendo que poderia impedi-lo —e que, se não o impedir, terá lugar—, não o impede, mas deixa que aconteça. Portanto, como a vontade de permitir o pecado supõe a presciência de que o arbítrio queira cometê-lo livremente —a menos que outros auxílios o impeçam—, em razão desta presciência, resulta contraditório, em sentido composto, que Deus queira permiti-lo e que este pecado não seja cometido.
8. No entanto, sobre a raiz da certeza da presciência de que o arbítrio criado vai pecar ─que precede à vontade livre de Deus de permitir o pecado─, resta-nos investigar se essa certeza se deve ao fato de que o próprio arbítrio é, por si só, propenso a pecar a tal ponto que ─a menos que um auxílio eficaz o direcione para um ato não malvado, refreando-o assim e evitando que caia em pecado─ ele se deixará levar, por necessidade de natureza, para esse pecado ─e, por isso, Deus saberia com certeza, a partir da própria natureza do objeto, que isso vai acontecer─, como se pretende sustentar ─com uma supressão evidentíssima da liberdade do arbítrio criado─ da maneira que até aqui temos contestado, ou se isso não seria assim, mas sim que Deus, em virtude da altura de seu entendimento e de sua penetração eminentíssima do arbítrio criado, além da natureza do objeto, saberia que isso vai acontecer em razão da liberdade de arbítrio, embora também soubesse o contrário, se, em razão dessa mesma liberdade de arbítrio, fosse acontecer o contrário, como é possível; isso suporia atribuir a Deus uma ciência média com respeito aos futuros contingentes que dependem do arbítrio criado.
9. Portanto, como os autores com quem disputamos não parecem estabelecer ─como fazem os luteranos e outros hereges─ predefinições, moções e determinações através das quais, com seu concurso eficaz, Deus mova e determine o arbítrio criado para os atos pecaminosos de tal modo que, nelas, possa conhecer com certeza quais pecados os arbítrios criados vão cometer; e como também não parecem reduzir a certeza dessa presciência à certeza e infalibilidade de que a vontade criada pecará, exceto que Deus, por meio do concurso eficaz dirigido para atos não malvados, a refreie e a impeça de cair em pecado ─como se fosse propensa a cair nele até tal ponto que, por necessidade de natureza, se deixaria levar para o pecado, exceto que outra coisa a refreasse─, porque isso é errôneo em matéria de e não pode ser reduzido a outra coisa que não seja a certeza da ciência média, através da qual Deus conhece com certeza em sua essência, em virtude da altivez de seu entendimento e de sua compreensão eminentíssima do arbítrio criado, em quais pecados cairá qualquer arbítrio criado, em razão de sua liberdade, dada a hipótese de que seja colocado em uma ou outra ordem de coisas e de circunstâncias, apesar de que, na realidade, dada essa mesma hipótese, poderia não cair neles e, se assim fosse acontecer, Deus saberia isso e não o anterior: por tudo isso, parece que é preciso afirmar que esses autores não negam que Deus possua uma ciência média dos pecados futuros, principalmente porque, quando tratam dos pecados, falam como se admitissem a ciência média e ensinam coisas que não poderiam ser sustentadas sem recorrer à ciência média, como em parte dissemos antes, embora, a dizer a verdade, às vezes pareçam dar a entender a opinião que impugnamos na disputa 50, refugiando-se na permissão dos pecados; por isso, apenas sustentam que certeza na presciência divina dos pecados futuros, sem nenhuma ciência média prévia.
10. No entanto, de passagem, devo alertar para o seguinte: Se admitem uma ciência média para os pecados, não faz sentido que a impugnem de maneira genérica. Além disso, quando falam dos futuros contingentes condicionados e, com toda a razão, reconhecem que Deus possui ciência deles, não faz sentido que, para salvar a certeza da ciência de todas as coisas que mencionam, recorram às predefinições que Deus teria estabelecido, se as condições tivessem sido cumpridas, como se nessas predefinições Deus pressupusesse com certeza os futuros a partir dessas condições. De fato, a descida de Saul a Queilá para capturar e matar Davi, se este tivesse permanecido em Queilá, teria sido um pecado mortal de Saul; da mesma forma, a entrega de Davi, sendo inocente e tendo concedido tantos benefícios aos habitantes de Queilá, também teria sido um pecado mortal deles; finalmente, os pecados em que os justos teriam caído, se a morte não os tivesse levado, também teriam sido pecados mortais. Por isso, Deus não poderia ter predefinido todas essas coisas, nem poderia ter determinado e movido eficazmente o arbítrio criado a realizá-las, para poder conhecer com certeza esses futuros nessas e em virtude dessas predefinições, mas essa seria uma certeza que, sobre os pecados, possuiria a ciência média dada a hipótese de que essas condições se cumprissem.
11. Também no membro anterior explicamos que, na questão do arrependimento dos tírios e sidônios, recorrer a uma predefinição em virtude de um auxílio eficaz por si que teria ocorrido se entre eles tivessem acontecido os milagres que ocorreram em Corazim e em Betsaida e não, antes, à certeza da ciência média, sem dúvida, enfraquece e deixa sem significado as palavras de Cristo. Por isso, em geral, a certeza que Deus possui em relação a todos os futuros condicionados contingentes que vão acontecer, é a certeza da ciência média e não de uma predefinição em virtude da qual, através de um concurso eficaz, Deus determine o arbítrio criado a realizar esses atos, se tais condições forem cumpridas.
12. Mas passemos à questão dos atos não malévolos do livre arbítrio; certamente, se o arbítrio criado, sem a predefinição e o concurso divino eficaz por si só, pode realizar todos os atos pecaminosos que sem dúvida realiza, embora alguns deles sejam muito difíceis de executar como atacar o inimigo ou escalar um muro, quando uma guerra é injusta e muito perigosa e a natureza se mostra relutante, assim como muitos outros atos pecaminosos —, não vejo por que, sem este auxílio eficaz e com uma predefinição por meio apenas de um concurso geral imediato sobre os atos e os efeitos que seria como aquele com o qual, segundo a opinião daqueles com quem disputamos, Deus concorre nos atos pecaminosos —, o livre arbítrio não possa realizar atos indiferentes, ou mesmo moralmente bons, que não envolvam nenhuma dificuldade, mas, ao contrário, prazer e deleite, como querer deitar-se ou comer quando essas coisas são feitas sem pecar e são prazerosas —, cumprir com o dever conjugal, querer passear ou brincar para se divertir e fazer muitas outras coisas semelhantes. Pois faria papel de ridículo quem negasse isso, principalmente porque Deus não restringe, nem coage a liberdade inata das causas segundas, quando o que deve ser feito não é algo ruim, mas, ao contrário, bom, e porque não é necessário multiplicar, nem aumentar sem necessidade os concursos de Deus, especialmente os dirigidos a atos puramente naturais. Pois, sem dúvida, seria surpreendente que aqueles que combatem em uma guerra de maneira injusta lutassem sem a predefinição e o concurso eficaz de Deus e, ao contrário, aqueles que combatem licitamente precisassem, para resistir e lutar, da predefinição e do concurso eficaz de Deus. Portanto, se o arbítrio criado pode realizar esses atos sem uma predefinição e um concurso divino eficazes por si e esses atos variam em função de muitas circunstâncias pois começam ou terminam em um momento determinado e não em um anterior ou posterior, são mais ou menos intensos, sendo, por exemplo, um passeio em um ou outro sentido mais ou menos rápido, podendo-se dizer o mesmo de outras circunstâncias —, então o fato de Deus prever com certeza que esses atos ocorrerão com toda segurança e dadas certas circunstâncias antes que outras, não poderá ser reduzido à certeza da predefinição e da determinação do arbítrio por meio de um concurso divino eficaz por si só, mas à certeza da ciência média, através da qual Deus conhece, em virtude da altura de seu entendimento, em que sentido e circunstâncias o arbítrio se inclinará, em razão de sua liberdade, dada a hipótese de que Ele queira criá-lo e colocá-lo na ordem de coisas e de circunstâncias em que o colocou, embora não saberia isso, mas algo muito diferente, se em razão da mesma liberdade de arbítrio e dada a mesma hipótese, algo muito diferente fosse acontecer.
13. Podemos confirmar isso mesmo, porque na disputa 33 demonstramos que um e o mesmo ato natural, realizado ─aqui e agora─ de maneira indiferente, pode ser bom ou mau moralmente variando apenas uma circunstância que não tenha relação com a diversidade desse ato natural; desse modo, o mesmo consentimento ─aqui e agora─ para deitar-se em concúbito com uma mulher determinada, pode ser indiferentemente um ato de castidade conjugal, se precedido por um contrato matrimonial, ou um ato de fornicação e de pecado, se não for precedido. Também demonstramos que, com o mesmo influxo da causa segunda e de Deus com que se produz esse ato natural, também aparece, sem outro influxo de Deus ou da causa segunda, uma razão formal em termos morais, seja virtuosa, seja pecaminosa. Portanto, no caso de que a esse ato não preceda um contrato matrimonial, dito ato não se realizará com um concurso eficaz pelo qual Deus premova e determine o arbítrio, mas apenas com um influxo geral divino sobre esse ato, resultando esse influxo indiferente para que dele se siga esse ato ou o contrário e, por isso, esse ato se realizará sem um concurso divino eficaz, se precedido por um contrato matrimonial e o consentimento for um ato de castidade conjugal. Portanto, Deus não previu com certeza, em virtude de uma predefinição e de um concurso eficaz, que esse ato bom iria ocorrer, mas em virtude da certeza da ciência média, que procede da altivez e da eminência de um sujeito cognoscente que conhece com certeza algo que em si é incerto.
14. Certamente, é surpreendente que esses autores estendam as predefinições e os concursos eficazes por si mesmos a todos os atos não malvados, incluindo os naturais. Pois eles estabelecem algumas predefinições e concursos apenas para atos sobrenaturais, mas não para os que são realizados pelos anjos ou pelos homens em estado de inocência, mas apenas para aqueles atos que os homens realizam em estado de natureza caída; e afirmam que esta foi a graça de Cristo.
15. Da mesma forma, se os autores com quem discutimos admitem, em relação aos atos pecaminosos, uma ciência média nos termos que explicamos anteriormente, então, como dos atos pecaminosos depende a maior parte das coisas que o livre-arbítrio humano realizou e realizará desde o início do mundo até o fim dos tempos, por essa razão, Deus não conhece esses futuros com uma certeza absoluta, mas com a certeza da ciência média, através da qual Ele prevê, dada a hipótese de que o livre-arbítrio cometa estes ou aqueles pecados, que também serão cometidos estes ou aqueles outros pecados, que de outra forma não seriam cometidos.
A menor ─ou seja, dos atos pecaminosos depende a maior parte das coisas que o livre-arbítrio humano realiza e que não ocorreriam, se os atos pecaminosos não os precedessem─ é demonstrada da seguinte forma: Do pecado dos anjos dependeu a tentação e a sedução de Eva; pois, se os anjos não tivessem pecado, não haveria demônios para tentar e seduzir Eva. Da mesma forma, da tentação e do pecado de Eva dependeu que Adão caísse no pecado que infectou e levou à perdição o gênero humano. Do pecado de Adão dependeu que, uma vez perdida a justiça original, o gênero humano oscilasse enormemente e se movesse entre pecados e boas ações; igualmente, desse ato dependeu que as diferentes gerações de homens tomassem um rumo muito distinto, que não fosse como teriam sido no estado de inocência ─como diremos no devido lugar─ e que as circunstâncias variassem de maneira surpreendente em relação ao lugar e ao tempo em que vivessem e a muitas outras coisas, das quais dependeu que, após a queda do gênero humano e até o fim dos tempos, homens diferentes realizassem coisas muito diferentes ─tanto boas quanto más─ das que teriam ocorrido em outras circunstâncias. Da mesma forma, dos pecados dos descendentes de Adão dependeram muitas coisas: dos pecados dos judeus dependeu a morte de Cristo, a redenção do gênero humano e tudo o que se seguiu a ela; dos pecados dos tiranos dependeu a glória dos mártires; dos adultérios, dos incestos e de outras fornicações dependeu o nascimento de todos aqueles que nasceram por causa dessas fornicações e, consequentemente, que ocorressem todas as coisas ─tanto boas quanto más─ realizadas pelo livre-arbítrio daqueles que nasceram dessa forma; das guerras injustas e de outros homicídios dependeu que não ocorressem todas as coisas que o livre-arbítrio daqueles que morreram dessa forma teria realizado, assim como todas as coisas que teriam sido realizadas pelo livre-arbítrio daqueles que teriam nascido dos que morreram dessa forma, podendo-se dizer o mesmo de muitas outras coisas cuja diversidade, em função das circunstâncias, e cuja existência ou não existência dependeram dos pecados dos homens; pois, em muitas ocasiões, batalhas, litígios injustos, diversões desordenadas e outras más ações fizeram com que muitas mulheres não se casassem por falta de dote ou que não se casassem com aqueles com quem, em outras circunstâncias, teriam se casado; a tudo isso também se deveu que muitos emigrassem de um lugar para outro e que o nascimento dos homens experimentasse uma variação tão grande; assim também, muitas outras coisas variaram em função dessas e de outras circunstâncias. Portanto, Deus não conhece com certeza e como futuros absolutos muitos atos bons que o livre-arbítrio humano realizaria desde o início do mundo até o fim dos tempos, mas sim com dependência da ciência média, através da qual Ele conheceu os pecados futuros dos quais esses atos dependeriam, dada a hipótese de que Ele mesmo estabeleceu a ordem das coisas que estabeleceu desde o princípio.
16. Mas passemos a considerar de maneira genérica as predefinições tal como as estabelecem nossos adversários, recorrendo a um concurso eficaz com o qual Deus moveria, aplicaria e determinaria o arbítrio em todos os seus atos não malvados. Antes de oferecer meu primeiro argumento, devo começar dizendo que, para que haja pecado, não basta que este seja espontâneo da maneira como são espontâneos os atos dos animais, mas é necessário que seja livre e que o seja com liberdade de contrariedade ou de contradição, como costuma se dizer, de tal modo que no poder do arbítrio esteja, quando consente em cair em pecado, não consentir, uma vez consideradas todas as circunstâncias que naquele momento concorrem; de outro modo, se não pudesse não consentir em cair nesses pecados, não pecaria mesmo consentindo naquele momento, porque ninguém peca, nem se torna merecedor de castigo, por fazer algo que não pode evitar. Mas consideremos que em seu poder esteja evitar alguma das circunstâncias concorrentes em razão das quais em seu poder não estaria não consentir em cair em pecado. Este seria o caso de quem se embriaga livremente, sabendo que, quando se embriaga, costuma matar outros; certamente, este homem peca quando se embriaga, não porque, devido à sua falta de temperança, se priva do uso da razão, mas também porque pode cometer homicídio, dado o perigo ao qual se expõe de acabar com a vida de outros injustamente; isso é assim, tanto se comete homicídio, como se não o faz; agora bem, se mata alguém em estado de embriaguez, não pecará, porque naquele momento em seu poder não está não matar. Santo Agostinho afirma que a liberdade —tal como a explicamos e que, uma vez recebida a instrução da luz da razão, é totalmente necessária para que possa haver pecado— depende da existência de vontade; assim também ensina que essa dependência é necessária até tal ponto que, se algo não acontecesse voluntariamente, teria que se afirmar imediatamente e sem controvérsia alguma que não é pecado.
17. Isso posto, apresento meu primeiro argumento: Da mesma forma que, para que haja pecado, não basta que um ato seja espontâneo, mas é necessário que seja livre de tal modo que esteja no poder do arbítrio, ao consentir em cair nele, não consentir, uma vez consideradas todas as circunstâncias que concorrem naquele momento, assim também, para que um ato seja meritório ou moralmente bom mais ainda, para que seja um ato livre e indiferente em relação ao bem ou ao mal morais —, é necessário que, quando o arbítrio o realiza, esteja em seu poder, uma vez consideradas todas as circunstâncias que concorrem naquele momento, não realizá-lo; de fato, esta é a liberdade de contradição como costuma se dizer e, no mínimo, é necessário que ela exista para que possamos dizer que esse ato é livre, mesmo que seja apenas indiferente em relação ao bem e ao mal morais; certamente, sem a liberdade de contradição, esse ato não pode ser moralmente bom, nem meritório, como admitem todos os católicos; mais ainda, em razão dessa liberdade, somos donos de nossos atos e se esses atos são meritórios merecedores do prêmio, do louvor e da honra eterna com que o Pai eterno honrará para sempre e sem nenhuma interrupção, na presença de todos os bem-aventurados, aqueles que nesta vida serviram a Cristo e aprovará, com o ato de sua vontade e o juízo de seu entendimento, que Lhe demonstraram livremente uma submissão que poderiam não Lhe demonstrar. Mais ainda, esta é a liberdade em virtude da qual falamos de 'livre arbítrio', como explicamos na disputa 2. De fato, se nossos atos carecem dessa liberdade, embora sejam espontâneos, serão denominados 'naturais' e não 'livres', como todos os católicos concordam em afirmar.
Agora, depois de termos explicado e demonstrado de forma tão extensa a maior, vamos apresentar a menor: Mas se Deus predetermina todos os atos não malvados do arbítrio criado de tal modo que decida mover e determinar o livre arbítrio a realizá-los, por meio de um concurso eficaz em si mesmo ─sem o qual o arbítrio não poderia realizá-los e com o qual não poderia deixar de realizá-los─, então desaparecerá a liberdade do arbítrio ─tal como a explicamos─ para realizar todos esses atos.
Portanto, essa opinião é perigosa em matéria de fé, para não dizer que é claramente errônea.
A menor se demonstra assim: No instante em que o arbítrio realiza esses atos, ele não pode deixar de realizá-los; caso contrário, o concurso que move o arbítrio em direção a esses atos não seria eficaz por si só, mas sua eficácia ou não eficácia dependeria de que, naquele momento, o arbítrio quisesse ou não consentir e cooperar com esse concurso e, consequentemente, desapareceria a predefinição que nossos adversários tentam introduzir e, com ela, a certeza da ciência divina de que, em razão dessa predefinição, esses atos contingentes acontecerão com toda segurança, de modo que não haveria outro motivo para uma certeza além da certeza da ciência média ─que antecede a certeza absoluta─, por meio da qual, em virtude da eminência e da altíssima capacidade de seu entendimento, Deus prevê ─dada a hipótese de que, por sua parte, Ele queira colocar um arbítrio determinado em uma ordem determinada de coisas, de circunstâncias e de auxílios─ em que sentido esse arbítrio se inclinará em razão de sua liberdade, podendo inclinar-se no sentido oposto e, se assim fosse acontecer, Deus saberia isso e não o anterior.
18. Nesta questão também não recurso a alguma circunstância que, por causa do arbítrio criado, pudesse não ocorrer e em razão da qual o arbítrio se mostrasse incapaz de não realizar este ato, como seria o caso de alguém que comete homicídio quando se embriaga, conforme dissemos anteriormente: em primeiro lugar, porque o movimento através do concurso eficaz de Deus —em virtude do qual, segundo a opinião desses autores, o arbítrio se mostra incapaz de não cooperar e de não consentir— não depende do arbítrio criado, conforme sustentam esses autores, mas tão somente da vontade livre divina, pela qual Deus quer conferir esse concurso; e, em segundo lugar, porque não haveria mérito, nem liberdade, quando o arbítrio realiza um ato não malvado ou meritório, mas haveria quando ocorresse a circunstância que depende do livre arbítrio e que este pode evitar.
19. Da mesma forma, nesta questão também não se pode recorrer ao sentido dividido (segundo sustentam esses autores, no sentido dividido o arbítrio pode não realizar este ato e isso bastaria para que dito ato fosse livre e meritório), porque neste caso o sentido dividido pode ser entendido da seguinte maneira: se desde a eternidade Deus decidisse não mover o arbítrio com um concurso eficaz por si mesmo e, chegando o momento em que o arbítrio fosse realizar o ato, não o movesse com este mesmo concurso eficaz, nesse instante o arbítrio poderia não realizar este ato. No entanto, nesse instante o arbítrio poderia não realizá-lo de tal modo que —segundo afirmam esses autores— não poderia realizá-lo, porque sem um concurso eficaz, segundo afirmam, não poderia realizá-lo e, dessa maneira, nunca supõem uma situação ou um instante em que, dadas todas as circunstâncias que concorrem nesse instante, na potestade do arbítrio esteja, indiferentemente, realizar ou não este ato, sendo isso, no entanto, necessário para que seja um ato livre e meritório, como explicamos.
A distinção entre 'sentido dividido' e 'sentido composto' não permite salvaguardar no próprio arbítrio criado uma liberdade tal que, em seu poder, esteja, indiferentemente, realizar ou não este ato, mas apenas permite salvaguardar uma liberdade divina em virtude da qual Deus possa, indiferentemente, conferir ao arbítrio um concurso eficaz para realizar este ato —de tal modo que o arbítrio careça de liberdade para não realizá-lo— e também possa não conferir-lhe este mesmo concurso eficaz, pelo qual, uma vez conferido, o arbítrio não realizaria o ato de tal modo que carecesse de liberdade para realizá-lo. Mas se isso basta para que haja liberdade de arbítrio, então os animais possuirão liberdade de arbítrio, porque Deus pode, indiferentemente, conferir-lhes ou não um concurso eficaz para seus atos espontâneos: quando lhes confere este concurso e realizam o ato, poderiam não realizá-lo em sentido dividido, se não lhes conferisse este concurso; quando não lhes confere este concurso e não realizam o ato, poderiam realizá-lo em sentido dividido, se lhes conferisse o concurso eficaz para realizá-lo.
Mas, para que se possa falar de uma distinção entre 'sentido dividido' e 'sentido composto' que não destrua a liberdade de arbítrio, é necessário que o próprio arbítrio seja em si mesmo realmente capaz de realizar ou não o ato, dada também a existência daquilo com o que não concorda a outra parte da contradição, ou seja, aquilo em virtude de cuja existência esta parte da contradição é impossível em sentido composto, porque aquilo preexiste pela seguinte razão, a saber, porque em razão da liberdade de arbítrio não existe a parte da contradição com a que não concorda; agora, se esta parte fosse ocorrer, como bem pode acontecer sem que aquilo o possa impedir, então aquilo nunca teria ocorrido, como explicamos na disputa anterior a respeito da ciência de Deus sobre os atos contingentes que dependem de nosso arbítrio.
20. Quando nossos adversários, forçados por nossos argumentos, são obrigados a reconhecer que a liberdade de arbítrio não pode ser defendida de forma alguma com suas predefinições, costumam fugir para um refúgio de ignorância muito pouco seguro em relação à questão sobre a qual discutimos; assim dizem, seguindo Cayetano, que confessar nossa ignorância sobre o modo como a liberdade de arbítrio concorda com a presciência, a providência, a predestinação e a reprovação divinas, é melhor do que negar as predefinições. No entanto, como, por um lado, as predefinições, tal como nossos adversários as apresentam, não podem ser fundamentadas nas Sagradas Escrituras, nem na tradição, nem nos Concílios, nem nos Santos Padres, mas, ao contrário, destroem claramente a liberdade de arbítrio, contradizem as Escrituras e as definições eclesiásticas e são muito poucos os escolásticos que as defenderam ─aliás, até trinta anos atrás, os escolásticos nunca as conheceram sob esse nome─ e, por outro lado, se falarmos com franqueza sobre a presciência, providência, predestinação e reprovação divinas sem recorrer a essas predefinições, a liberdade de arbítrio concorda com elas de maneira excelente, por tudo isso, sem dúvida, nós católicos não temos por que nos refugiar na ignorância de uma maneira tão pública, com tanto desonra por nossa parte e com um desprezo ainda maior para com nossos dogmas por parte dos infiéis, especialmente porque nem os Santos Padres, nem Santo Tomás, nem outros proeminentes escolásticos se refugiaram no asilo da ignorância.
21. Além disso, para persistir em suas predefinições, nossos adversários se referem de maneira desdenhosa à liberdade à qual aludimos e explicamos e que, conforme consta, é matéria de como demonstramos extensamente na disputa 23 —, chamando-a de 'liberdade de não se sabe o quê'; mas outros deverão julgar com que segurança e com quanta reverência para com os ensinamentos da isso foi dito.
22. Também consideram de pouco valor que, recorrendo à certeza da ciência média, tenhamos conciliado de maneira tão evidente a liberdade com a presciência, providência, predestinação e reprovação. Mais ainda, consideram que a ciência média deveria ser rejeitada porque com ela tudo isso poderia ser conciliado facilmente e com toda clareza, apesar de que aos Santos Padres tenha custado tanto conciliar tudo isso, o que os levou a pensar na conciliação exata da liberdade de arbítrio com as quatro coisas mencionadas e com a graça divina como o mais difícil entre o difícil. Agora, como o verdadeiro concorda com o verdadeiro e o verdadeiro discorda rapidamente do falso, o fato de que, graças à ciência média, essas quatro coisas concordem tão facilmente e de maneira tão manifesta com a liberdade de arbítrio, seria um sinal evidente de que ensinamos o modo correto e legítimo de conciliar tudo isso. Mas se discordássemos o mínimo dos dogmas da fé, do propósito dos Santos Padres e dos Doutores católicos ou de suas opiniões incontestáveis, nesta nossa maneira de conciliar tudo isso, sem dúvida, esta poderia ser considerada suspeita com toda razão. Além disso, ninguém poderá censurar-nos sem ser injusto o fato de que, após ingressar no caminho dos Padres e instruir-nos com os esforços, descobertas e opiniões egrégias de outros Doutores, tenhamos aprofundado um pouco mais e tenhamos encontrado a raiz que explica como tudo isso pode concordar e como todas as dificuldades podem ser resolvidas facilmente; assim também, ninguém poderá censurar-nos o fato de que, trinta anos em disputas públicas e privadas e vinte em nossos comentários à 'Primeira parte' da Summa Theologica, tenhamos apresentado esta raiz sob o nome de 'ciência natural' (porque esta ciência divina não é livre e precede a todo ato livre da vontade divina) e —nos últimos tempos e, de maneira mais exata que nunca antes, nesta nossa Concordia— sob o nome de 'ciência média', antes de tudo, em primeiro lugar, porque, embora os Santos Padres, que eu me lembre, não façam uso —de maneira expressa— da distinção entre 'ciência livre' e 'ciência natural', assim como tampouco de uma 'ciência média' como termo médio entre a livre e a natural, no entanto, ensinam com consenso unânime que os atos futuros contingentes que dependem de nosso arbítrio não acontecem porque Deus assim o tenha pressabido, mas que, como Deus é Deus —ou seja, devido à altura de seu entendimento, que abrange a natureza das coisas futuras—, conhece todas essas coisas porque, em razão da liberdade de arbítrio, vão acontecer, como explicamos na disputa anterior, e, em segundo lugar, porque, por essa mesma razão, esses mesmos Padres ensinam com consenso unânime que a liberdade de nosso arbítrio concorda com a presciência divina, como é evidente se se ler o que dissemos, citando a esses Padres, tanto na disputa anterior, como na disputa 23 e em outros lugares; sem dúvida, tudo isso corrobora a ciência média; e embora a alguém não convençam nossas palavras, a matéria de discurso deverá fazê-lo.
23. Não nos satisfaz a resposta de nossos adversários, a saber, que esses testemunhos devem ser entendidos apenas em referência aos atos pecaminosos e não aos atos não malévolos do livre-arbítrio criado.
Em primeiro lugar: Porque se, com relação aos atos pecaminosos do arbítrio criado, devemos admitir que Deus possui uma ciência média, a menos que nossos adversários queiram afirmar que o arbítrio se deixa arrastar para os pecados por necessidade da natureza e que, como dissemos anteriormente, queiram destruir totalmente a liberdade do arbítrio criado, por que não estendem essa mesma ciência média divina que em alguma ocasião admitem, para que também haja ciência média acerca de todas as coisas que o livre arbítrio criado realiza livremente de tal modo que em sua própria potestade está não realizá-las, uma vez que a liberdade do arbítrio não pode ser salvaguardada de outro modo, conforme demonstramos com o argumento anterior?
Em segundo lugar: Porque quando os Santos Padres falam assim, não se referem apenas aos futuros contingentes de maneira genérica, como admitem nossos adversários ─embora ofereçam exemplos de atos pecaminosos, porque a ordem do discurso assim o exige e porque a ciência média pode ser explicada e entendida mais facilmente em relação aos atos pecaminosos do que aos demais atos─, mas às vezes também aludem a atos bons e meritórios.
Pois no testemunho que oferecemos na disputa anterior, São Justino Mártir fala claramente sobre os futuros contingentes de maneira genérica. O mesmo ele faz nos testemunhos que apresentamos na disputa 23, nos quais também se refere expressamente aos atos bons. E em suas Quaestiones et responsiones ad orthodoxos, na resposta à questão oitava, entre outras coisas, ele diz o seguinte: 'Assim, Deus não é a causa de nossas virtudes, nem de nossos vícios, mas sim a nossa intenção e a nossa vontade', cujas palavras apresentamos no lugar mencionado. Aqui se pode observar facilmente que, na medida em que os atos virtuosos dependem livremente de nosso arbítrio, São Justino Mártir os atribui ao próprio arbítrio —como causa livre que pode realizá-los ou não realizá-los— e não à presciência divina em virtude da qual são conhecidos de antemão.
Também Orígenes, no testemunho que citamos na disputa anterior, fala claramente dos futuros contingentes, na medida em que incluem atos maus e atos bons e meritórios. Antes de concluir, ele diz: 'Para saber que a causa da salvação de cada um não está na presciência de Deus, mas na intenção e nos atos de cada um, leia-se Paulo &c.'. Sem dúvida, a intenção ou o arbítrio são causa de salvação através de atos bons, entre os quais estariam: castigar o corpo e submetê-lo à servidão, como Orígenes recorda neste lugar, recorrendo a São Paulo. Em outras passagens suas que citamos na disputa 23, Orígenes também fala dos futuros contingentes de maneira genérica, oferecendo exemplos tanto de atos virtuosos quanto pecaminosos, porque estariam no poder do arbítrio.
Embora o testemunho de São João Damasceno que citamos na disputa anterior possa ser aplicado ao pecado do diabo, é totalmente evidente, por outros testemunhos seus que apresentamos na disputa 23, que o mesmo teria que ser dito a respeito dos atos bons do livre-arbítrio.
Embora o testemunho de São João Crisóstomo se refira a atos pecaminosos, a partir desse mesmo testemunho e de outros seus que apresentamos na disputa 23 (membro 4), é evidente que se deve dizer o mesmo sobre os atos virtuosos e, ainda mais, sobre os atos indiferentes.
São Jerônimo, no segundo e terceiro testemunhos que citamos na disputa anterior, certamente fala dos futuros contingentes de maneira genérica, sendo evidente que, sobre os atos virtuosos e pecaminosos, ele pensava o mesmo, como pode ser observado nas passagens que oferecemos no mencionado membro 4.
Além disso, é evidente que Santo Agostinho pensava o mesmo sobre os atos virtuosos, como podemos ler nas passagens que citamos na disputa anterior. Pois ele fala da mesma forma tanto sobre a presciência do consentimento em cair no pecado, quanto sobre a presciência do dissentimento, que é um ato bom. E naquela conhecida passagem do 'De libero arbitrio' (livro 3, capítulo 4), na qual ele concilia a liberdade de arbítrio com a presciência exatamente da mesma maneira, seja o ato futuro prescienciado bom ou mau, ele conclui da seguinte forma: 'Se não deve punir os pecadores por ter previsto que pecariam, também não deve premiar aqueles que agem com retidão por ter previsto que agiriam assim'. É evidente que Santo Agostinho pensa isso mesmo, por outras passagens que oferecemos no mencionado membro 4 e em outros lugares.
Essa mesma opinião também é defendida pelos testemunhos de outros Padres se cada um deles for lido com atenção —, com os quais, no mencionado item 4, corroboramos a liberdade de arbítrio tanto para o ato bom quanto para o ato mal.
24. Agora retornaremos ao ponto de onde nos desviamos, para apresentar nosso segundo argumento com o objetivo de excluir as predefinições que nossos adversários inventam. Se, por um lado, a escolha de alguns para a beatitude —por vontade absoluta e eficaz de Deus— precede sua predestinação antes de qualquer previsão dos meios e do uso futuro hipotético do livre arbítrio de cada um deles, assim como também a rejeição dos demais por uma vontade divina igualmente eficaz, e, por outro lado, a predestinação dos adultos consiste na predefinição de conceder-lhes auxílios eficazes que determinem o arbítrio deles de tal modo que, com uma certeza proveniente da qualidade dos auxílios, esses adultos executem as obras e perseverem nelas para alcançar a vida eterna —sendo os demais, a quem Deus não decidiu conceder esses auxílios, excluídos por isso do número dos predestinados—, daí, em primeiro lugar, se seguirá que na faculdade do arbítrio do adulto predestinado não estará o desviar-se da beatitude, assim como tampouco de cada um dos meios em particular pelos quais chegará a ela; no entanto, sem dúvida alguma, isso é errôneo em matéria de fé.
25. Pois, no predestinado, a liberdade de arbítrio desapareceria em relação aos meios para alcançar a bem-aventurança e, consequentemente, desapareceria a razão de seus méritos, por meio dos quais deveria tender e alcançar a bem-aventurança, sendo isso claramente herético.
Demonstração: Consideremos qualquer meio em singular seja uma disposição próxima ou remota para a recepção da graça, seja um mérito para alcançar a vida eterna ou um aumento da graça por meio do qual um predestinado alcançar a vida eterna; se nossos adversários afirmam que na faculdade do arbítrio deste predestinado está de fato não consentir com este meio ou opor-se a ele por um pecado anterior ou destruí-lo com um pecado posterior de tal maneira que não alcance a vida eterna por meio dele, daqui se seguirá que os auxílios que Deus lhe prepara e decide conferir não seriam eficazes por si mesmos para que se desse este meio e o adulto perseverasse até o final de sua vida, como afirmam nossos adversários, mas sim que do arbítrio dependeria a eficácia desses auxílios para que as duas coisas anteriores se produzissem, pois é o arbítrio que quer consentir ou não e, igualmente, o que quer cair em pecado ou não; daqui também se seguirá que não é certo que esses meios venham a se dar apenas em virtude da predefinição de Deus de conferir por sua parte esses auxílios, mas sim que, ao mesmo tempo, da presciência divina através da qual, graças à altivez de seu entendimento, Deus prevê, dada a hipótese de que decida oferecer esses auxílios, o que acontecerá em função da liberdade desse arbítrio, apesar de que poderia acontecer o contrário e, se assim acontecesse, Deus presaberia isso e não aquilo outro dependeria que com certeza se deem esses meios. Mas, com as predefinições que estabelecem, nossos adversários pretendem o contrário do que afirmam. Portanto, ou bem devem reconhecer que a certeza dos meios da predestinação não procede exclusivamente da predefinição e da qualidade dos auxílios, mas também depende da certeza da ciência média, ou bem deverão supor que o predestinado não possui liberdade para poder desviar-se da beatitude e dos meios através dos quais pode alcançá-la. Como demonstramos claramente no argumento anterior, aqui não se pode recorrer ao sentido dividido, a saber: para a existência dessa liberdade, basta que o predestinado possa desviar-se dado o caso de que Deus não decida conferir-lhe esses auxílios.
26. Em segundo lugar, do argumento da predestinação e das predefinições também se seguiria que no poder dos adultos não predestinados não estaria alcançar a beatitude, nem realizar nenhum dos atos bons que são necessários para alcançá-la e que, de fato, não vão realizar; mais ainda, em seu poder também não estaria realizar nenhum dos atos não malvados ou indiferentes que não vão realizar; daí se seguiria que, com respeito aos pecados que cometem, careceriam de liberdade de contrariedade, porque possuiriam liberdade de contradição, a saber, para não conceder seu consentimento em cair neles e não para discordar e lutar contra eles. Mas quem pode duvidar de que isso é errôneo em matéria de fé?
27. Demonstração: Segundo a opinião de nossos adversários, nenhum dos não predestinados pode realizar o ato necessário para alcançar a beatitude, que seria impossível de realizar sem o auxílio eficaz de Deus; tampouco pode realizar nenhum dos outros atos não malvados, que seriam impossíveis de realizar sem um concurso divino eficaz por si mesmo. Agora, supondo o argumento da predestinação e as predefinições, Deus teria decidido não conferir a nenhum deles os auxílios ou concursos direcionados para esses atos. Portanto, no arbítrio e no poder dos não predestinados não estaria realizar nenhum dos atos dessa classe que não realizarão e, por isso, em seu poder não estaria alcançar a beatitude, porque não a alcançarão, nem podem alcançá-la, sem realizar esses atos. Como discordar e lutar contra o pecado não é um ato não malvado do arbítrio, mas também é um ato moralmente bom, sem dúvida, quando consentem em cair no pecado, segundo a opinião de nossos adversários, carecem de liberdade para discordar dele, porque não podem discordar sem um concurso eficaz de Deus e, se o recebessem, realmente discordariam e não cairiam no pecado; de outro modo, esse concurso não seria eficaz. Por essa razão, do argumento da predestinação e das predefinições que nossos adversários se esforçam para introduzir e defender, segue-se claramente tudo o que dissemos.
28. Além disso, da mesma forma, daqui também se segue que Deus não teria deixado nas mãos do arbítrio e da potestade dos predestinados realizar mais atos —ou outros atos— não malvados ou meritórios do que aqueles que realizarão, assim como também não teria concedido a liberdade de contrariedade para discordar e lutar contra os pecados em que cairão, mas apenas a liberdade de contradição, porque Deus não teria decidido conceder-lhes —para realizar todos esses atos— um concurso eficaz por si só, sem o qual não poderiam realizá-los e com o qual não poderiam deixar de realizá-los. Pelo contrário, supondo essa opinião, abre-se uma enorme porta ao erro daqueles monges segundo os quais não se deve repreender ninguém por não fazer o bem, mas sim rezar a Deus para que conceda a essas pessoas a graça ou o auxílio eficaz para agir com retidão; desse erro falamos na disputa 1.
De nada adianta que nossos adversários digam que, dos não predestinados, depende sua falta de disposição para receber o concurso eficaz de Deus —com o qual poderiam realizar os atos pelos quais alcançariam a beatitude e poderiam discordar e lutar contra os pecados em que caem— e que Deus sempre estaria disposto a ajudá-los de maneira eficaz, se isso não dependesse deles. Mas, como digo, de nada adianta que digam tal coisa. Em primeiro lugar: porque, segundo sua própria opinião, sem qualquer previsão —nem consideração— da disposição ou uso futuro do livre-arbítrio, Deus teria decidido ou predefinido desde a eternidade ajudar —com um concurso eficaz por si mesmo— alguns a realizar esses atos em particular e outros não; por essa razão, segundo a opinião desses autores, Deus não teria permitido que isso dependesse do arbítrio criado ou da disposição livre do arbítrio —para fazer uma coisa ou outra—, a menos que esses autores pretendam contradizer-se. Em segundo lugar: porque essa disposição não pode ser entendida, a menos que ocorra através de algum ato ou cooperação do livre-arbítrio. Agora, segundo sua opinião, o arbítrio não pode alcançar essa disposição sem um auxílio prévio ou um concurso eficaz de Deus; mas, uma vez recebido esse concurso, tal disposição não pode deixar de ocorrer; e, na ausência desse concurso, tal disposição não pode ocorrer. Em terceiro lugar: porque, finalmente, seja qual for essa disposição —mesmo que seja um discordar de cair em pecado, não realizando nenhum ato, mas refreando-se e não fazendo nada—, sem dúvida, se dela depende que Deus conceda ou não seu concurso eficaz, então, da mesma forma que, sem a ciência média, não pode haver certeza sobre o fato de que essa disposição ocorrerá ou não por meio do arbítrio criado, assim também, o fato de que esse concurso eficaz deva ser concedido e que Deus tenha predefinido concedê-lo, também dependerá da certeza da ciência média que precede essa predefinição e sem a qual ela não ocorreria. Dessa forma, nossos adversários acabam na ciência média que negam a Deus e da qual tentam fugir desesperadamente, vendo-se obrigados a admitir que a predestinação e a reprovação não ocorrem sem que lhes anteceda uma ciência média daquilo que nossos adversários estabelecem como disposição para os concursos eficazes de Deus.
29. Certamente, se o modo de predestinar alguns adultos e não outros é este que acabamos de explicar, de acordo com as predefinições e a opinião de nossos adversários, não entendo de que modo possa ser verdade que Deus queira que todos os homens se salvem, se a salvação não está neles mesmos, e que Deus os tenha criado a todos, verdadeiramente e não de modo fictício, para a vida eterna. Também não entendo em virtude de que razão Deus possa se queixar com justiça de que os não predestinados não vivam com piedade e santamente e não alcancem a vida eterna. Além disso, também não entendo como pode ser verdade que Deus tenha colocado os homens nas mãos de suas próprias decisões, para que estendam sua mão direita para tudo o que desejarem. Pelo contrário, supondo este modo de predestinação e de predefinições, desaparece a liberdade do livre-arbítrio criado e a causa, a justiça e a bondade de Deus para com os réprobos se obscurecem e se escurecem sobremaneira. Por isso, em matéria de fé, esta opinião não é piedosa, nem segura, sob nenhum conceito.
30. Também vamos oferecer um terceiro argumento: Os auxílios com que Deus nos ajuda a alcançar a justificação não são eficazes por si mesmos e por sua própria natureza, mas sua eficácia depende do consenso livre do arbítrio, que pode não oferecer, sem que esses auxílios possam impedi-lo; além disso, quando consente, pode dissentir, como define com toda clareza o Concílio de Trento (sessão 6, capítulo 5) e como explicamos extensamente em vários lugares e, sobretudo, na disputa 40 e no Apêndice à Concordia ("Resposta à terceira objeção"). Assim também, quando o arbítrio consente com os auxílios da graça, pode cooperar e consentir, em razão de sua liberdade, de maneira mais ou menos intensa e esforçando-se mais ou menos; consequentemente, pode realizar um ato mais ou menos intenso, como demonstramos na disputa 39. Portanto, com maior razão deveríamos admitir essas duas coisas em relação ao concurso com que Deus concorre nos atos naturais não malvados do livre arbítrio, a saber: este concurso não é eficaz por si mesmo e, sem que esse concurso possa impedi-lo, o arbítrio quando consente e realiza esses atos pode não consentir, nem realizar tais atos, de modo que a liberdade inata do arbítrio não desaparece por causa do concurso de Deus e de sua ajuda; assim também, quando o arbítrio realiza um ato, pode influenciá-lo com um esforço maior ou menor e, consequentemente, em razão de sua liberdade, fazer que seja mais ou menos intenso, como reconhecem todos os Doutores a respeito dos atos naturais do livre arbítrio. Por essa razão, não pode haver predefinições tais como nossos adversários pretendem estabelecer, isto é, por meio de um concurso de Deus eficaz por si mesmo para todos os atos não malvados do livre arbítrio. Mais ainda, são perigosíssimas em matéria de fé. Além disso, do mesmo modo que não pode haver tais predefinições, tampouco pode haver essa certeza da presciência divina em relação aos futuros contingentes que dependem do arbítrio criado que se apoiaria nessas predefinições, pelo que seria necessário recorrer à certeza da ciência média, por meio da qual, além da natureza do objeto, Deus conhece com certeza, em virtude da altura de seu entendimento e de sua penetração eminentíssima do arbítrio criado, em que sentido e com que intensidade o arbítrio se inclinará dada a hipótese de que, em uma determinada ordem de coisas e de circunstâncias, esses auxílios o ajudem.
31. Considero que as definições que citamos do Concílio de Trento demonstram este argumento ad hominem, porque nossos adversários não negam, nem podem negar, que no trecho citado o Concílio define que nosso livre-arbítrio, incitado e movido pela graça preveniente, pode dar seu assentimento, a fim de consentir com essa graça, de tal modo que, quando o dá, possa não dá-lo ou, mais ainda, possa discordar nesse momento, se assim o quiser. Agora, eles sustentam que esse consentimento precede a conversão, para a qual, segundo afirmam, seria necessário outro auxílio eficaz da graça coadjuvante acrescentado à graça preveniente, para que a conversão seja completa.
Por isso, apresento o seguinte argumento: Esse consenso anterior é um ato não maléfico do livre arbítrio, porque consentir dessa maneira com a graça preveniente não é um ato maléfico. Portanto, haveria um ato não maléfico do livre arbítrio que teria ocorrido sem um concurso eficaz, de tal forma que, quando ocorreu, poderia não ter ocorrido; mais ainda, poderia ter ocorrido o dissenso contrário. Portanto, Deus não pressupôs com certeza este ato apenas em uma predefinição pela qual teria predefinido este ato com um concurso eficaz, mas porque Ele conseguiu saber através da ciência média, em virtude da altura de Seu entendimento, em que sentido o arbítrio se inclinaria dada a hipótese de que Ele mesmo, por meio da graça preveniente, quisesse premovê-lo e incitá-lo; consequentemente, nossos adversários afirmam falsamente que toda a certeza da presciência divina em relação a todos os atos não maléficos do livre arbítrio procede apenas da predefinição desses atos —por meio de um concurso eficaz— e não de uma ciência média.
Como nossos adversários costumam defender frequentemente que a não conversão dos réprobos e o fato de não alcançarem a vida eterna dependem deles mesmos, ou que Deus não abandona ninguém sem que esteja sempre, por sua parte, disposto a conceder um auxílio suficiente ─dependendo do próprio pecador que não o receba─, e além disso costumam alegar outras coisas semelhantes a estas como precedentes ao auxílio eficaz, cuja presença ou ausência estaria sob o poder indiferente do arbítrio criado, por esta razão, devemos objetar-lhes que o fato de isso ocorrer ou não não depende de uma predefinição, nem existe qualquer certeza sobre o sentido em que o livre arbítrio deva determinar o auxílio divino, exceto por meio da ciência média de Deus. Ao mesmo tempo, também devemos lembrar que, sem apresentar exceção alguma, nossos adversários reduzem toda a certeza de todos os atos não malvados do livre arbítrio à certeza das predefinições por um concurso divino eficaz em si mesmo para que o arbítrio realize todos esses atos. Portanto, devemos esclarecer se eles sempre se expressam de acordo com esta doutrina ou se, ao contrário, com o objetivo de defender outra tese, apresentam alguma exceção, pretendendo que passe despercebida.

Seção III: Até que ponto são admissíveis as predefinições

1. Após excluir as predefinições que nossos adversários estabelecem, devemos explicar quais predefinições de Deus são necessárias, tanto para a existência de todas as coisas criadas, quanto para que estas, em sua totalidade, se submetam à providência divina.
Mas antes devemos advertir que, entre as coisas criadas, algumas cuja raiz próxima de contingência é exclusivamente o arbítrio de Deus. Tais coisas são, por um lado, aquelas que Deus produz sozinho e de maneira imediata e que não dependem de nenhuma outra raiz de contingência ─como são todas as coisas que Deus produziu no primeiro momento da criação─ e, por outro lado, aquelas que, posteriormente, surgiram dessas primeiras coisas exclusivamente por necessidade da natureza e sem nenhuma dependência de outra raiz de contingência.
2. Se nos referimos a todos esses futuros contingentes antes de sua existência, todos concordaremos que todos esses futuros dependem exclusivamente da predefinição através da qual Deus decidiu desde a eternidade, com vontade absoluta, produzir imediatamente alguns deles e não negar Seu concurso necessário para que deles se derivem, em seguida, as demais coisas. Também todos concordaremos que toda a certeza da ciência, em virtude da qual Deus conhece esses futuros antes de sua existência, depende exclusivamente dessa predefinição. Além disso, todos concordaremos que, com respeito a esses futuros contingentes, devemos distinguir em Deus uma ciência dupla, a saber: uma ciência livre, por meio da qual Deus conhece esses futuros de maneira absoluta, após Sua predefinição livre; e uma ciência natural, por meio da qual, antes dessa determinação, conhece todas essas coisas como possíveis em virtude de Sua onipotência e, além disso, sabe que acontecerão dada a hipótese de que Ele mesmo queira produzir alguma delas e, uma vez produzidas, queira não negar o concurso necessário para que ajam. Sem dúvida, ninguém pode negar que, com respeito a esses futuros contingentes, Deus esteja em posse dessa ciência hipotética. Da mesma forma, também não poderá negar que essa ciência seja puramente natural, porque a existência desses futuros é absolutamente necessária, no caso de que se produza o que enuncia a hipótese. No entanto, neste ponto discordamos de nossos adversários, a saber: não consideramos que o concurso geral de Deus com as coisas que produziu imediatamente, de modo que delas se seguissem outras, seja um influxo de Deus sobre a causa com o objetivo de que, uma vez movida e aplicada a agir por esse influxo, essa causa aja, mas sim que seria um influxo que, junto com a causa, influenciaria de maneira imediata sobre o efeito, como dissemos em nossa vigésima quinta disputa e nas seguintes.
3. Vale a pena distinguirmos, para maior clareza, um gênero intermediário de coisas que estariam entre as anteriores e outras das quais falaremos mais tarde —, a saber: aquelas coisas que Deus produz imediatamente, embora na produção de algumas delas concorram o entendimento ou a vontade humana ou angélica, mas não como potências livres, e sim enquanto agem por necessidade da natureza; no entanto, consideradas em termos de sujeito ou de alguma outra coisa, dependem de outra raiz de contingência, além de Deus. Tais coisas seriam: a ressurreição de Lázaro, a infusão da visão ao cego de nascença e o chamado de São Paulo, quando este se dirigia a Damasco, não apenas o externo, mas também o interno, através da iluminação prévia e do movimento de sua vontade, antes que São Paulo procedesse a oferecer qualquer assentimento; outras coisas semelhantes a estas se produziriam nos chamados interiores de outros homens, destinados a que estes alcancem a ou se arrependam. Pois, embora a existência de Lázaro no mundo e as demais coisas que lhe aconteceram até o momento em que Deus o fez ressuscitar tivessem além de Deus outras raízes, em virtude das quais estas coisas aconteceram contingentemente devendo-se dizer o mesmo sobre o cego de nascença, até o momento em que recebeu o sentido da visão, e sobre São Paulo, até o momento em que foi chamado à e ao arrependimento —, no entanto, a ressurreição de Lázaro, a iluminação do cego de nascença e o chamado de São Paulo, pressupondo tudo o mais, careceram de outra raiz de existência que não fosse a vontade livre de Deus, sendo esta a única raiz de sua existência. Por isso, se falarmos com precisão sobre estas coisas, antes de sua existência, pressupondo tudo o mais, teríamos que dizer o mesmo que explicamos em primeiro lugar sobre os futuros contingentes, a saber, dependem exclusivamente da predefinição livre de Deus, pela qual, desde a eternidade, Ele decide produzir estas coisas deste modo em um determinado momento do tempo. Da mesma forma, teríamos que dizer que também a certeza da ciência pela qual Deus conhece, pela razão mencionada, estas coisas como futuras em sentido absoluto, depende exclusivamente dessa mesma predefinição, mas em outro sentido, a saber, na medida em que, para a existência de tais coisas, se requerem previamente aquelas outras que, em grande medida, dependem do arbítrio criado; por esta mesma razão, sobre a certeza da ciência das coisas do terceiro gênero ao qual imediatamente vamos nos referir —, teríamos que dizer o mesmo que sobre a certeza da ciência pela qual Deus conhece aquelas outras coisas como futuras em sentido absoluto.
4. Portanto, o terceiro gênero seria o daquelas coisas cuja raiz próxima de contingência é o livre-arbítrio criado, do qual dependeria —seja de maneira próxima, seja remota— a existência dessas coisas.
Mas, depois de explicar as predefinições divinas dirigidas às ações humanas de nosso livre-arbítrio no estado de natureza caída, entender-se-á facilmente, por um lado, o quão necessárias elas eram para as ações dos anjos e dos homens no estado de inocência, cuja liberdade era maior que a nossa, e, por outro lado, até que ponto tudo o que depende de maneira mediata do livre-arbítrio criado depende das predefinições divinas. Por isso, falaremos apenas das predefinições divinas dirigidas às nossas ações.
5. Como dizemos em nosso Apêndice à Concordia ('Resposta à segunda objeção'), no que diz respeito a esta questão que estamos tratando, podemos distinguir um gênero triplo de ações humanas. Um primeiro gênero: de ações indiferentes ou que até são moralmente boas, que, no entanto, não oferecem grande dificuldade para serem realizadas com o concurso geral de Deus. Um segundo gênero: de ações que são sobrenaturais ou tão difíceis de realizar que necessitam de um auxílio particular de Deus. Um terceiro gênero: de ações que são pecaminosas. Oferecemos exemplos de ações de cada um desses três gêneros, ao nos referirmos ao ato discursivo ordenado pelo livre arbítrio, como também agora faremos.
6. No entanto, devemos começar dizendo que, seja qual for a opinião que se tenha sobre as predefinições divinas, não se pode negar que, antes de qualquer ato livre da vontade divina e, portanto, antes de qualquer predefinição, o entendimento divino está em posse de uma ciência que de modo algum é livre por meio da qual Deus conhece não apenas tudo o que pode acontecer em virtude de sua onipotência, tanto por intervenção própria e imediata, quanto por intervenção das causas segundas, mas também aquilo que qualquer arbítrio criado e, em geral, qualquer outro agente podem realizar, dada qualquer hipótese ou predefinição divina. Pois ninguém pode negar que Deus esteja em posse dessa ciência, embora possa ser objeto de controvérsia se essa ciência, por hipótese de algumas predefinições em relação a todos os objetos, é puramente natural a Deus como anteriormente dizíamos dela, quando tem por objeto as coisas criadas do primeiro gênero ou não, mas que, com relação às coisas que dependem de maneira mediata ou imediata do arbítrio criado, essa ciência divina deveria mais bem ser considerada ciência média, que poderia não ocorrer, se o arbítrio, em razão de sua liberdade, fosse agir em sentido oposto dada a mesma hipótese. Mas nossos adversários parecem sustentar que essa ciência é puramente natural com relação a todas as coisas que, segundo eles, requerem a predefinição divina, porque afirmam que a predefinição de Deus e seu concurso determinam o arbítrio a realizar essas ações, sem que o arbítrio possa fazer o oposto em sentido composto. Além disso, essa parece ser a ciência divina que defendem em relação aos futuros contingentes condicionados, conforme o que dissemos no item 1, respeitando a ideia que eles mesmos querem transmitir; mas não explicam com clareza qual é sua opinião sobre os atos pecaminosos, em relação aos quais negam as predefinições divinas; no entanto, nos dois itens anteriores explicamos, de maneira conjectural, sua opinião mais provável.
7. Isso posto, é necessário que, desde a eternidade, às ações humanas do primeiro gênero como seria o ato discursivo de Pedro que, com caráter indiferente, vai se produzir amanhã ou este mesmo ato discursivo, mas moralmente bom, por sua relação com uma diversão honesta segundo a virtude da eutrapelia e da urbanidade precedam as seguintes predefinições de Deus, a saber: a vontade de criar toda uma ordem de coisas até chegar a Pedro e a vontade de cooperar com cada uma das causas segundas tanto livres, quanto naturais que se sucederam ininterruptamente desde o começo do mundo até o aparecimento de Pedro; a vontade de criar a alma de Pedro, de infundi-la ao seu corpo e de cooperar simultaneamente com todas as causas que cooperam com imediatidade em seu nascimento e, por isso, a vontade de conferir-lhe em parte, por Ele mesmo e com imediatidade e, em parte, por intervenção de causas segundas um livre-arbítrio e as demais potências necessárias para falar e para realizar outras coisas; assim também, a vontade de cooperar em tudo o necessário até que Pedro chegue ao momento de falar, ocorrendo todas as circunstâncias que vão ocorrer nesse momento; finalmente, a vontade de não negar-lhe sua cooperação geral para falar de um modo determinado, se é assim como, em razão de sua liberdade, quer falar assistindo-o sempre de tal maneira que, se quisesse falar ou executar outra operação, também o ajudaria desse modo e, por isso, a vontade de conferir-lhe essa cooperação, ao ver que, em razão de sua liberdade, tem a intenção de falar.
No entanto, segundo nosso entendimento, este concurso não é um movimento de Deus sobre o arbítrio para movê-lo, aplicá-lo e determiná-lo a falar de maneira específica ou simplesmente a falar, mas sim uma influência que ocorre juntamente com o arbítrio e cuja existência depende da influência e da cooperação do arbítrio, da mesma forma que como explicamos na disputa 40 a influência e a cooperação do hábito com a potência para a produção do ato dependem da cooperação da potência. No entanto, na questão que estamos tratando, assim como a existência deste concurso geral depende da influência e da cooperação do arbítrio, da mesma forma, por sua vez, a existência da influência do arbítrio depende deste concurso geral, como explicamos detalhadamente na disputa 25. Além disso, o concurso geral é, por si mesmo, indiferente para que dele se siga a vontade ou a rejeição do discurso ou qualquer outro ato do arbítrio; além disso, com relação à espécie do ato, seria o próprio arbítrio que determinaria, como causa particular, o concurso geral.
Eis aqui de quais predefinições divinas depende o ato discursivo e indiferente de Pedro que acontecerá amanhã ou este mesmo ato discursivo, mas bom em termos morais. Agora, essas predefinições e este concurso geral de Deus não podem impedir que Pedro permaneça livre e possua liberdade para querer falar ou não falar ou, igualmente, falar com ardor ou —abusando de seu arbítrio, do concurso geral e dos demais dons de Deus— de maneira perversa, para alcançar algum fim malvado, ou então aplicar-se ele mesmo a fazer algo muito diferente, a menos que pretendamos negar —e errar claramente em matéria de fé— a liberdade de arbítrio de Pedro e a bondade moral e o mérito desta obra, se for feita estando em graça.
No entanto, como este ato discursivo e ardente está incluído no fim em relação ao qual Deus predestina conceder a Pedro um livre arbítrio, seu concurso geral e todos os demais dons mencionados, por isso —prevendo que, em razão da liberdade de Pedro, este ato discursivo ocorrerá dada a hipótese de que Ele queira predestinar todas essas coisas—, através desta predestinação e, por isso, de sua providência em relação a este efeito —que ocorrerá em virtude desta predestinação— e, igualmente, através de seus próprios dons, dirige este ato em particular e, concedendo seu beneplácito, quer que este ato ocorra, sempre com dependência da cooperação livre de Pedro, que, como previsto, ocorrerá.
Por outro lado, os Padres chamam de 'predestinar' e 'predefinir' o fato de que Deus direcione e queira da maneira mencionada - ou seja, por meio de suas predefinições e sua providência - todas as nossas boas obras em particular, mesmo que sejam naturais, e também todo efeito não maléfico das causas secundárias. Assim, Leão IX, em sua Epístola a Pedro de Antioquia, diz: 'Creio que Deus predestinou exclusivamente as boas ações, mas previu tanto as boas quanto as más'. Santo Agostinho, ou quem quer que seja o autor das seguintes palavras (De articulis sibi falso impositis, art. 10), diz: detestável e abominável a opinião segundo a qual Deus é autor de qualquer vontade ou ação má; de fato, sua predestinação tem como objeto apenas a bondade e a justiça: Pois todos os caminhos de Deus são misericórdia e verdade. Certamente, a Santa Divindade sabe que não prepara os adultérios das casadas, nem as desonras das virgens, mas as condena; não dispõe tais coisas, mas as castiga. Portanto, a predestinação de Deus não anima, nem persuade, nem empurra, nem é autora das quedas daqueles que se precipitam, nem da injustiça dos malvados, nem dos desejos dos pecadores, mas predestina seu julgamento, pelo qual retribuirá a cada um segundo seu comportamento, seja bom, seja mau'.
8. Quanto às ações humanas do segundo gênero, vamos oferecer um exemplo de ação sobrenatural e dificílima, a saber, uma confissão de enquanto se é torturado até a morte ─o que torna a pessoa um mártir─, e vamos supor que um infiel realiza essa ação e através dela alcança a justificação.
Sem dúvida, para que esta ação ocorra, não são necessárias apenas todas as predefinições de Deus direcionadas para a ação indiferente ou moralmente boa que acabamos de mencionar, mas também é necessária uma predefinição que permita chamar, ajudar e confortar esse homem naquele momento, por meio de auxílios extraordinários de graça preveniente e cooperante, sem os quais o arbítrio desse homem não poderia realizar essa ação. No entanto, essas predefinições e as anteriores, assim como os auxílios, não tiram desse homem sua liberdade no momento em que ele se converte para não se converter e, até mesmo, discordar da fé, negá-la e, finalmente, sucumbir e negar a fé, no momento em que as torturas o levam à morte. De acordo com o que dissemos no membro anterior e em outros lugares, não duvidamos de que isso é matéria de fé; caso contrário, essa conversão à e a perseverança na confissão não seriam meritórias; mais ainda, não seriam atos bons em termos morais, porque sem liberdade seja de contrariedade, seja de contradição para realizar o oposto, nenhum ato pode ser meritório, nem bom em termos morais.
Mas, como Deus prevê, em razão da liberdade desse homem, sua confissão e perseverança futuras até o momento de sua morte, dada a hipótese de que Ele queira predefinir ajudá-lo dessa maneira, por isso, através da própria predefinição ou da ordem de sua providência —que, em relação a esse efeito, se completa por meio dessa predefinição— e através dos próprios auxílios, Ele quer em particular que se produzam sua confissão e perseverança. Assim, Ele quer que isso aconteça, concedendo o beneplácito de sua vontade e se comprazendo por que isso se produza simultaneamente em virtude de seus dons e da vontade livre do arbítrio. Por essa razão, diz-se que Deus predestina e predefine essa confissão, como dissemos anteriormente a propósito da ação boa em termos morais.
O que dissemos sobre esta operação sobrenatural e dificílima do nosso arbítrio, deve ser entendido também em relação às demais operações para cuja realização se requer um auxílio particular de Deus; pois a predefinição de conferir este auxílio não tira de modo algum do arbítrio sua liberdade para não realizar esta ação ou discordar dela, como define o Concílio de Trento (sess. 6, cap. 5, cân. 4).
9. Finalmente, no que diz respeito às ações humanas pecaminosas, entre as quais esteve a negação tripla de Pedro, nossos adversários afirmam com razão que Deus não predefiniu suas negações. No entanto, isso não pode ser explicado como eles o fazem, porque Deus não aplica, nem determina o arbítrio a realizar essas ações com um concurso eficaz, como se o determinasse a realizar boas ações; pelo contrário, quando Deus decide conceder ao pecador um arbítrio, seu concurso geral e tudo o mais necessário para realizar as ações mencionadas, não pretende que estas se produzam, mas decide conferir tudo isso para um fim muito distinto, sendo o próprio pecador quem, em razão de sua liberdade e com o objetivo de realizar essas ações, abusa de tudo o que Deus lhe confere.
Embora não se deva dizer que Deus predestina ou predefine as ações más, no entanto, deve-se afirmar que foram necessárias algumas predefinições de Deus para que essas ações ocorressem por meio do livre arbítrio. Por essa razão, para que as três negações de Pedro ocorressem, foram necessárias todas as predefinições que como dissemos anteriormente são necessárias para a realização da ação indiferente no mesmo instante em que Pedro negou Cristo. Entre essas predefinições, incluo a predefinição de não negar ou de conceder a Pedro seu concurso geral. Além disso, foi necessária a predefinição de permitir-lhe, visando ao melhor fim que o próprio Deus buscava com sua permissão, aquela ação que Ele previa que, em razão da liberdade de Pedro, ocorreria sob aquelas circunstâncias; ou seja, a predefinição de não alterar essas circunstâncias, nem conceder-lhe outras ajudas com o objetivo de que, em razão dessa mesma liberdade de arbítrio, ele não caísse naquela negação.
10. Eis que explicamos todas as predefinições necessárias para todos os futuros contingentes positivos sem exceção. Agora, em poucas palavras, vamos explicar a razão da diferença entre nossa opinião e a de nossos adversários. Eles pensam que as predefinições eternas de Deus e seus concursos pelos quais, em virtude de suas predefinições, Ele concorre em um momento do tempo com qualquer arbítrio criado em todo ato não malvado determinariam o arbítrio a realizar este ato de tal modo que o arbítrio careceria de liberdade para não realizá-lo, porque consideram que todo concurso tal é por si mesmo eficaz e que sua eficácia não depende do arbítrio de modo algum. Daí que, em consequência, considerem que toda a certeza da presciência divina, pela qual Deus conhece em termos absolutos todos esses atos futuros, depende unicamente das predefinições em virtude das quais o arbítrio criado realiza esses atos não de maneira infalível, mas também inevitavelmente. Daí que, em consequência, neguem que Deus esteja, com respeito a esses atos, em posse de uma ciência média, como em verdade deve negar-se segundo os fundamentos expostos, porque a ciência através da qual, anteriormente ao ato livre de sua vontade, Deus previu os atos futuros dada a hipótese de que se produzam essas predefinições, seria totalmente natural a Deus, como dissemos. Por esta razão, sustentam que a ciência pela qual Deus conhece os futuros contingentes condicionados como, por exemplo, que tírios e sidônios se teriam arrependido dada a hipótese de que entre eles se tivessem produzido os milagres que ocorreram em Corazim e em Betsaida seria puramente natural dentro da predefinição que naquele momento se produziria. Mas como nós consideramos que é erro em matéria de estabelecer predefinições e concursos divinos tais que arrebatem ao arbítrio sua liberdade para não realizar um ato não malvado no instante em que o realiza ou para dissentir dele, se assim o quiser, em consequência, afirmamos que toda a certeza da ciência divina pela qual Deus previu que, sem dúvida, vão se produzir os atos tanto bons, como maus do arbítrio criado, não procederia exclusivamente das predefinições de conferir auxílios e concursos pois, sem que estes pudessem impedi-lo, o arbítrio poderia se inclinar em sentido contrário —, mas que procederia da ciência média, pela qual Deus conhece, anteriormente a todo ato de sua vontade, em que sentido se vai inclinar o arbítrio, em razão de sua liberdade, dada a hipótese de que Ele queira conferir-lhe esses auxílios e concursos, embora do mesmo modo saberia o contrário, se o arbítrio fosse se inclinar em sentido contrário em razão de sua mesma liberdade. Assim afirmamos que, por meio desta ciência, Deus conhece com certeza todos os futuros que nossos adversários denominam 'condicionados'.
Agora, afirmamos que a certeza dessa ciência média procede da altura e da perfeição ilimitada do entendimento divino, em virtude das quais Deus conhece com certeza algo que em si é incerto, graças ao fato de que, em sua essência divina, compreende de maneira eminentíssima todo arbítrio suscetível de criação em razão de sua onipotência.
11. Finalmente, observe-se que Deus possui ciência média anteriormente a todo ato livre de sua vontade e, além disso, que esta ciência é de todos os efeitos em sua totalidade, não apenas daqueles que realmente vão se produzir em virtude dos arbítrios que Ele decidiu colocar na ordem das coisas e das circunstâncias que decidiu criar, mas também daqueles que se produziriam tanto em virtude desses mesmos arbítrios, como em virtude de todos aqueles outros arbítrios que, em número infinito, poderia ter criado, uma vez produzida a variação de qualquer circunstância na ordem das coisas que decidiu estabelecer e uma vez produzido qualquer outra ordem entre as infinitas ordens que, em número infinito, poderia estabelecer. Agora, esta ciência média é ciência de todos esses efeitos de tal modo que de nenhum deles o seria, exceto dada a hipótese de que se produzisse uma predefinição da vontade divina por meio da qual Deus quisesse estabelecer uma ou outra ordem e quisesse prover e ajudar de uma ou de outra maneira através dessa ordem ou de seus meios e circunstâncias. Como a razão da providência divina se completa, em relação a cada um de seus efeitos, por meio dessa predefinição, daí se segue que, anteriormente ao ato de sua vontade, Deus não prevê nada com ciência média, exceto dada a hipótese e sob a condição de que Ele queira prover de uma ou de outra maneira em relação a um mesmo efeito. Portanto, esta ciência média não impede, nem suprime a providência divina, mas, ao contrário, é a luz e o conhecimento que o entendimento divino requer de antemão, porque antes de decidir qualquer coisa por meio de sua vontade e, por isso, antes de prover qualquer coisa em relação ao arbítrio criado conforme à sua natureza livre, Deus prevê, através desta ciência e deste conhecimento, o que o arbítrio vai fazer, mas não de maneira absoluta, e sim dada a hipótese e a condição de que Ele queira prover de uma ou de outra maneira. Portanto, da mesma forma que, nesse momento anterior ─ou seja, antes que Deus predefina e decida qualquer coisa por meio de sua vontade─, não podemos encontrar em Deus razão completa de sua providência, nem com respeito ao arbítrio criado, nem com respeito a qualquer outra coisa, porque ainda falta aquilo que é requerido por parte de sua vontade para que se possa falar de providência, assim também, nada se conhece nesse momento como futuro em termos absolutos, mas somente sob a seguinte condição: que Deus queira definir e prover as coisas de uma ou de outra maneira.
12. Agora vamos explicar a diferença entre a nossa opinião e a dos nossos adversários sobre a providência divina em relação às coisas que dependem imediatamente do livre-arbítrio criado. Nossos adversários consideram, e com razão, que Deus possui uma providência sobre todos os atos individuais do livre-arbítrio criado que não sejam maus; também pensam que Ele os dirige e que são efeitos de sua providência; no entanto, sustentam que Ele os dirige e é causa deles por meio de sua providência, porque, por um lado, decidiu desde a eternidade determinar e mover o livre-arbítrio criado para esses atos por meio de um auxílio ou concurso eficaz em si mesmo e, por outro lado, realmente move o livre-arbítrio com esse mesmo concurso eficaz em um momento determinado do tempo, de tal modo que, no poder do livre-arbítrio, uma vez colocado sob essa predefinição e esse concurso, não estaria em seu poder não realizar esses atos. Daí que, consequentemente, afirmem que esses atos são certos e infalíveis em virtude da ordem da providência divina.
13. Mas nós, que não duvidamos de que este modo de predefinição e de concurso eficaz por si elimina a liberdade de arbítrio para realizar esses atos e, consequentemente, é errôneo em matéria de fé, em primeiro lugar, afirmamos que, com sua sabedoria, Deus provê todas as coisas de maneira conforme à natureza de cada uma delas e, por isso, para as causas livres provê efeitos livres tanto naturais quanto sobrenaturais —, salvaguardando sempre sua liberdade de arbítrio, ou seja, concedendo-lhes liberdade para que no instante em que produzem seus efeitos e sem que todas as circunstâncias presentes naquele momento possam impedi-las não produzam esses efeitos ou, se assim o desejarem, produzam efeitos contrários, de tal modo que assim possuam o domínio de suas ações e possam ser atribuídas a elas virtudes e culpas, elogios e censuras, recompensas e castigos.
14. Em segundo lugar: Afirmamos que Deus dirige esses atos e que são efeitos particulares de sua providência, porque todas as causas que produzem esses efeitos em particular ─pelas quais Deus prevê, em virtude de sua ciência média, que esses efeitos se produzirão dada a hipótese de que Ele queira dispor o universo ou prover nele de maneira determinada─ são meios e efeitos de sua providência, dirigidos para a produção desses atos e outros semelhantes e conferidos através de sua predefinição eterna e sua providência. No entanto, entre esses meios e causas se inclui e se conta o próprio arbítrio, que, através de sua providência, Deus confere ao homem ou ao anjo para a produção desses atos junto com a faculdade de não produzi-los, mesmo preexistindo a ciência divina pela qual Deus vê, dada a hipótese de que queira colocar o arbítrio nessa ordem determinada de coisas e de circunstâncias, que este produzirá tais efeitos. Portanto, como entre os meios através dos quais Deus dirige com sua providência esses atos ─sendo Deus, na realidade, causa de cada um deles em particular, quando se produzem─ está o arbítrio criado, em cuja potestade realmente está não produzi-los, se assim o quiser, por isso, daqui se segue que esses atos não sejam seguros e infalíveis exclusivamente pelos meios da providência divina, se excluirmos a ciência média, através da qual Deus prevê ─em virtude da altura de seu entendimento, que abrange a natureza do objeto─ que esses atos se produzirão, em razão da liberdade de arbítrio, a partir desses mesmos meios e da ordem de sua providência.
15. Em terceiro lugar: Afirmamos ─conforme explicamos até o momento─ que, como esses atos dependem simultaneamente da liberdade do arbítrio e da vontade de Deus de conferir, por meio de sua providência ou predestinação eterna, tanto o arbítrio, como todos os demais meios necessários ─ou auxiliares─ para que esses atos ocorram, por isso, daí se segue que, prevendo Deus por ciência média que esses atos ocorreriam, em razão da liberdade do arbítrio, dada a hipótese de que Ele quisesse predefinir e prover desse modo a produção desses atos ─pois posteriormente, segundo nosso modo de entender, baseado na realidade das coisas, predefiniria e proveria dessa maneira─, tenha querido com vontade absoluta que esses atos sejam tais como Ele teria previsto que seriam, parecendo-Lhe bem que dependam tanto de Sua própria predefinição e providência, como da liberdade do arbítrio, na medida em que duas causas são necessárias até tal ponto para a existência desses atos que, se alguma delas faltasse em razão de sua liberdade, esses atos não ocorreriam.
16. Em quarto lugar: Afirmamos que, como não apenas nossos atos bons dependem —da maneira que explicamos— do nosso livre-arbítrio, mas também nossos atos maus dependem dessa mesma liberdade de arbítrio e, além disso, Deus não provê a cada um dos homens e dos anjos para atos naturais, nem sobrenaturais, do mesmo modo e igualmente, mas decide distribuir os dons de sua misericórdia conforme lhe apraz, sem deixar de assistir a todos em tudo o que é necessário, por isso, para uma providência perfeita de Deus —como dissemos na disputa anterior— é necessária a ciência média, através da qual, prevendo o que faria o arbítrio de qualquer criatura em qualquer hipótese e em qualquer estado de coisas e salvaguardando sua liberdade nessas ações, possa predestinar —desde a eternidade e sem nenhuma sombra de mudança no próprio decorrer do tempo— as criaturas que quiser dentre aquelas que decidiu criar e, além disso —decidindo prover a todas elas em cada uma das situações segundo sua sabedoria e o beneplácito de sua vontade—, possa prevenir seus atos de distintas maneiras e com diversos auxílios, instruí-las de modos diversos, permitir e tolerar suas faltas e pecados, chamá-las à e à penitência e, uma vez chamadas e tendo alcançado a justificação, fazer que progridam no bem e cuidar-se de muitas outras coisas em relação a elas.
17. Em quinto lugar: Afirmamos que, como todos os bens ─tanto os que são produzidos por causas que agem por necessidade da natureza, quanto os que são produzidos por causas livres─ dependem da predefinição divina ─como nós a explicamos─ e da providência divina de tal modo que, por meio delas, Deus os dirige em particular e como, além disso, os atos malvados do livre arbítrio, por um lado, estão sujeitos à providência e predefinição divinas, na medida em que as causas das quais procedem e o concurso geral de Deus necessário para realizá-los são conferidos através da providência e predefinição divinas ─embora não com o objetivo de que sejam esses atos os que procedam dessas causas, mas com o objetivo de que se produzam outros muito diferentes e de que se salvaguarde a liberdade inata das criaturas dotadas de arbítrio com vistas ao máximo bem─, e, por outro lado, também estão sujeitos à predefinição e providência divinas, na medida em que não podem existir em particular, a menos que Deus, por meio de sua providência, os permita em particular com vistas a algum bem maior, por tudo isso, daqui se segue que todas as coisas em sua totalidade estejam sujeitas em particular à providência e vontade divinas, que em alguns casos as dirigem em particular e em todos os demais as permitem em particular. Por esta razão, nem se move a folha que pende do ramo, nem cai ao chão nenhum dos dois passarinhos que se vendem por um asse, assim como tampouco nenhuma outra coisa acontece, sem a vontade e a providência de Deus sobre todas essas coisas em particular, seja dirigindo-as, seja permitindo-as em particular, sendo isso grande consolo para os justos que colocam toda a sua esperança em Deus e que descansam placidamente sob a sombra que projetam as asas de sua providência, enquanto desejam que a vontade divina sempre se cumpra em relação a eles, tanto na prosperidade, quanto na adversidade.
18. Por tudo o que dissemos, é fácil entender com quanta falsidade se afirma frequentemente que nós apenas falamos de uma providência genérica e não particular em relação às coisas que dependem do arbítrio criado, pelo fato de atribuirmos a Deus uma ciência média através da qual Ele prevê o que o arbítrio criado faria, dada a hipótese de que fosse colocado neste ou naquele ordem de coisas, de circunstâncias e de auxílios. Quem afirma isso sobre nós, não leva em consideração que na ordem de coisas, de circunstâncias e de auxílios, assim como na própria criatura dotada de livre arbítrio, estão contidos todos os meios da providência divina através dos quais Deus dirige em particular todas as boas ações que prevê que ocorrerão em virtude da liberdade deste arbítrio criado. No entanto, como não me preocupo com o que alguém diga de mim, porque qualquer um que leia a primeira edição da nossa Concordia ou esta segunda edição, poderá perceber facilmente o que realmente afirmamos, por isso, vamos omitir deliberadamente muitas coisas que nos são atribuídas falsamente como se as tivéssemos sustentado; da mesma forma, considero supérfluo responder a outras falsidades.

Seção IV: No qual refutamos outras objeções

1. Em primeiro lugar: Nossos adversários argumentam da seguinte maneira: Se Deus tivesse decidido não criar absolutamente nada, nEle haveria apenas ciência natural, através da qual Ele compreenderia a Si mesmo e, em Si mesmo, todas as coisas possíveis, tanto naturais quanto livres. Mas, a partir do momento em que decidiu criar as coisas, Ele possui apenas ciência livre, através da qual conhece o que vai acontecer em virtude de Seu decreto livre. Portanto, Deus não possui esse outro terceiro gênero de ciência, ou seja, a ciência média.
2. Demonstração: Ou podemos considerar a ciência divina em relação às coisas possíveis, anteriormente à determinação da existência destas por ato da vontade divina, e nesse caso estaríamos diante de uma ciência divina natural; ou podemos considerar a ciência divina em relação às coisas que, posteriormente à determinação livre da vontade divina, acontecerão em algum momento do tempo, e estaríamos diante de uma ciência livre. Portanto, Deus não possuiria um terceiro gênero de ciência.
3. Deste argumento, devemos negar a premissa maior. Pois, além da ciência puramente natural, através da qual todas as coisas mencionadas seriam conhecidas como meras possibilidades, haveria também uma ciência média pela qual Deus conheceria, entre todas aquelas contradições de futuros contingentes que dependem do livre-arbítrio criado, qual parte da contradição se realizaria, mas não em termos absolutos, e sim dada a hipótese de que Ele quisesse criar uma ou outra ordem de coisas, embora também conhecesse a parte contraditória, se esta fosse se realizar sob essa mesma hipótese, com dependência do livre-arbítrio criado, como explicamos até aqui. Nossos próprios adversários serão obrigados a reconhecer isso mesmo a respeito dos pecados que o livre-arbítrio criado cometeria sob essa hipótese, a menos que pretendam afirmar que Deus ignora quais pecados seriam cometidos sob essa hipótese, ou que, sob essa hipótese, o livre-arbítrio cometeria esses pecados por necessidade da natureza, sendo algo que refutamos amplamente na segunda parte. Observe-se que, mesmo que Deus tivesse decidido não criar nada, Ele estaria em posse de uma ciência livre, através da qual saberia que nenhuma das coisas que poderia criar se realizaria; pois, assim como, livremente, Ele não teria decidido criá-las, também, livremente, não saberia nada sobre as coisas que poderia criar e que não teria decidido que acontecessem. No entanto, nossos adversários falam de uma ciência livre de coisas positivas.
4. Quanto à demonstração, devemos dizer que a ciência divina admite um terceiro modo de consideração, a saber, em relação àquelas coisas que acontecerão, mas não em termos absolutos, e sim dada a hipótese de que o próprio Deus queira criar um ou outro orden de coisas, porque as coisas futuras por hipótese se encontrariam em um termo médio entre as puramente possíveis e as futuras em sentido absoluto, como explicamos no primeiro membro. Mas uma ciência divina considerada desse modo —isto é, em relação às coisas que, dada essa hipótese, aconteceriam com dependência do arbítrio criado— é ciência média, porque, embora não seja uma ciência divina livre, no entanto, Deus conheceria a parte contraditória, se esta fosse a se produzir, como é possível dada essa mesma hipótese.
5. Em segundo lugar: Nossos adversários argumentam da seguinte maneira: A razão pela qual não deveríamos estabelecer uma predefinição de Deus de conferir um concurso eficaz por si mesmo para que se produza o ato bom da vontade, assim como também não um concurso eficaz por si mesmo, seria a seguinte: uma determinação eficaz e total da vontade por parte dessa predefinição e desse concurso, suprimiria a liberdade da vontade para fazer o oposto e, consequentemente, a vontade não realizaria livremente esse ato, mas de maneira necessária, e, sendo assim, desapareceria a bondade moral e o mérito desse ato. Mas do fato de que a vontade esteja totalmente determinada quando age, não se segue que não aja livremente. Portanto, por essa causa, de maneira muito pouco razoável, deveríamos negar a predefinição divina de conferir um concurso eficaz por si mesmo, assim como o próprio concurso eficaz por si mesmo. A menor se demonstra assim: também na opinião de quem não admite essas predefinições e concursos eficazes, quando a vontade age livremente, se determinou em um dos dois sentidos da contradição; mais ainda, age porque se determinou. Mas isso não impede que aja livremente. Portanto, do fato de que a vontade, quando age, esteja totalmente determinada, não se segue que não aja livremente.
6. Sobre o maior deste argumento, devemos dizer que não é necessário admitir essas predefinições e concursos eficazes por si mesmos pela seguinte razão, a saber: porque aqueles que os defendem afirmam que, sem eles, a vontade não poderia realizar esse bom ato e, com eles, não poderia deixar de realizá-lo; além disso, o fato de recebê-los ou não não dependeria da própria vontade que vai realizar esse ato, mas exclusivamente de Deus, que desde a eternidade e livremente os predefiniria ou não; e uma vez que a vontade os tivesse recebido, perderia para sempre a faculdade de —de maneira indiferente— determinar-se ou não ou determinar-se em um ou outro sentido, sendo isso, no entanto, totalmente necessário para que a vontade seja verdadeiramente livre. É evidente que, uma vez que a vontade recebeu a predefinição e o concurso eficaz, perde para sempre essa faculdade, porque no momento em que esse concurso não está presente, a vontade não pode determinar-se a realizar esse ato, nem está em seu próprio poder fazer algo naquele momento que, caso o fizesse, recebesse esse concurso, porque então o concurso e a predefinição não dependeriam apenas da vontade livre de Deus, mas daquilo que a vontade, em razão de sua liberdade, faria ou não, pressabendo Deus por ciência média. Assim, no momento em que a vontade recebeu esse concurso eficaz, não pode deixar de determinar-se a realizar esse ato, porque se naquele momento estivesse em seu poder não determinar-se, poderia fazer com que esse concurso se tornasse ineficaz e, consequentemente, a eficácia ou ineficácia dependeria dela.
Portanto, concedendo a premissa maior do argumento apresentado, se ela se refere a uma determinação no sentido que acabamos de explicar ─que eliminaria a liberdade da vontade para realizar esse ato e, junto com ela, a bondade moral e o mérito desse ato─, então deverá negar-se a premissa menor, se ela se refere igualmente ao mesmo modo de determinação total.
Quanto à demonstração da menor, devemos negar que a vontade, quando age livremente, se determine previamente por natureza ao seu agir; pelo contrário, quando age livremente, ela se determina com vistas à sua operação; além disso, nesse mesmo momento com anterioridade por natureza ao fato de agir de maneira determinada ou não e com anterioridade também ao fato de querer ou rejeitar um ou outro objeto —, ela permanece indiferente em relação a se determinar a agir ou não, a agir uma coisa antes de outra e a querer tal coisa ou rejeitá-la, como explicamos na disputa 24. Mais precisamente, a vontade age livremente ou se determina livremente a agir, porque, com prioridade de natureza, permanece indiferente em relação a se determinar ou não da maneira mencionada e, por isso, quando se determina, pode não se determinar. Mas, uma vez que entendemos que, em determinado momento, ela está totalmente determinada, seria contraditório que não tivesse se determinado naquele momento e, consequentemente, não seria livre para não se determinar dessa maneira, como ensinaram Aristóteles e Boécio, segundo esta formulação tão repetida: 'O que é, quando é, não pode não ser'. Mas mencionamos essa questão na disputa citada.
7. Em terceiro lugar: Nossos adversários argumentam da seguinte maneira: Embora, dada a volição eficaz de um fim, a vontade não possa deixar de querer, em sentido composto, um meio necessário para esse fim, isso não suprime a liberdade, nem a bondade moral, nem o mérito na volição desse meio; por exemplo, ocorrendo no peregrino que está a caminho da bem-aventurança a volição eficaz da bem-aventurança eterna e apresentando-se a ele a observância de algum preceito que obriga sob pecado mortal, embora esse peregrino não possa deixar de querer, em sentido composto, essa observância, porque esse meio seria absolutamente necessário para alcançar a bem-aventurança, no entanto, isso não implica que essa volição não seja livre, moralmente boa e meritória. Portanto, o fato de que, dada a predefinição divina de conferir a alguém um concurso eficaz para algum ato bom, esse homem não possa deixar de realizar, em sentido composto, esse ato, não impede de forma alguma que tal ato seja livre e moralmente bom ou também meritório, se esse homem o realizar estando em graça.
8. Deste argumento, concedido o antecedente, devemos negar a consequência, porque, num primeiro momento, essas duas coisas que não podem acontecer em sentido composto, encontram-se simultaneamente na livre vontade do peregrino, de tal modo que, no momento em que ele quer a observância que lhe é oferecida do preceito, poderia tanto não querê-la, como, por isso mesmo, desistir simultaneamente da volição eficaz do fim e, consequentemente, manter-se em posse de uma verdadeira liberdade ou indiferença para fazer uma ou outra coisa em relação à observância deste preceito; mas, num segundo momento, admitido este gênero de predefinição e de concurso divino eficaz por si mesmo, não permaneceria em posse desta liberdade para realizar ou não esse ato bom, como explicamos a propósito do argumento precedente e anteriormente em várias ocasiões.
9. Em quarto lugar: Nossos adversários argumentam assim: Se um general prudentíssimo ou um chefe de família pudessem cuidar de seu exército ou de sua casa, provendo todas e cada uma das coisas, assim como os meios particulares para alcançar uma vitória ou um governo doméstico correto, sem dúvida, o fariam e, ao fazê-lo, neles resplandeceria a maior das prudências e das sabedorias; mas se não agem assim, será porque não podem. Mas Deus pode prover da maneira mencionada e com extrema facilidade todas as coisas e, com isso, a liberdade do arbítrio criado não desaparece. Portanto, Deus provê predefinindo todas as coisas em particular.
10. Se com este argumento se pretende apenas demonstrar que Deus possui providência de todas as coisas em particular, ele deve ser admitido em sua totalidade; certamente, não contradiz nossa opinião, porque consideramos que Deus possui providência de todas as coisas em particular, de tal maneira que dirige todas as boas ações em particular e permite as más em particular, como explicamos no membro anterior. Mas se com este argumento se pretende demonstrar que Deus provê as coisas e os meios em particular com o objetivo de dirigir cada uma das coisas através de sua predefinição e por meio de um concurso eficaz por si mesmo, nesse caso, admitindo a maior e, em sua primeira parte, a menor, teremos de negar a segunda parte desta, a saber, este modo de predefinição não suprime a liberdade do arbítrio criado; pois demonstramos o contrário. Mas a seguir teremos que negar a consequência e a razão será muito diferente. Certamente, uma vitória e um governo doméstico isentos de toda falha são fins que o general e o chefe de família sempre tentam alcançar, como assim acontecerá, sempre que isso lhes for possível. No entanto, o fim natural e sobrenatural em relação aos quais Deus provê às criaturas livres não são fins de Deus, mas das próprias criaturas, a quem são propostos de tal maneira que Deus permite que em seu poder esteja alcançá-los ou não, para que, desse modo, nas criaturas livres os meios possam ser considerados mérito, louvor e honra e os próprios fins possam ser considerados a recompensa. Por essa razão, não seria conveniente que Deus lhes provesse de concursos eficazes, mas de concursos cuja eficácia ou ineficácia para agir dependesse das próprias criaturas dotadas de livre arbítrio.
11. Em quinto lugar: Nossos adversários argumentam assim: Acontecem muitas coisas que não poderiam ocorrer sem que a vontade eficaz de Deus as predefinisse em particular. Portanto, deve-se admitir a predefinição de Deus. A consequência é evidente. E o antecedente é manifesto, como pode ser visto em tudo o que aconteceu além do curso comum das coisas: a vocação e conversão milagrosas de São Paulo no próprio ato de perseguir Cristo e a Igreja; o que aconteceu com José, quando, odiado por seus irmãos, foi despido, jogado em um poço, vendido e encarcerado sem qualquer culpa —, embora, finalmente, tenha alcançado grande glória por todas as outras coisas que lhe aconteceram, principalmente porque em todas elas ele se comportou como Cristo posteriormente. Sem dúvida, todas essas coisas não poderiam ter acontecido sem a decisão especial de Deus e a predefinição de sua vontade eficaz. Um fato igualmente extraordinário aconteceu com os irmãos Fares e Zaraj, que, no momento de nascer, agiram de tal modo que um estendeu a mão primeiro e a parteira amarrou nela um fio vermelho, dizendo: 'Este saiu primeiro'; mas, retirando a mão, deixou passar o outro. O mesmo podemos dizer de Esaú e Jacó, pois o menor e não o maior foi o preferido, não pelas obras, mas por aquele que chama; e assim foi dito: 'Porque o maior servirá ao menor'; e isso mesmo aconteceu em outros casos semelhantes.
12. Deste argumento, devemos conceder o antecedente, não apenas quando se refere àquilo que Deus opera milagrosamente além do curso comum das coisas, mas também quando se refere àquilo que somente Deus produz de maneira imediata e que unicamente pode ser considerado contingente em relação a Ele, como explicamos no início do membro anterior; pois, com respeito a essas coisas, admitimos as predefinições pela vontade eficaz de Deus, assim como Seu concurso eficaz para que essas coisas aconteçam, conforme dissemos no lugar mencionado. Por isso, se o consequente se refere apenas à predefinição dessas coisas, também deverá ser admitida a consequência; mas se se refere a uma predefinição tal dirigida também àquilo que depende do arbítrio criado ou àquilo que, em termos de sujeito ou de outra coisa, depende do arbítrio criado do modo que explicamos no membro anterior, será necessário negar a consequência. Com respeito aos exemplos citados como demonstração do antecedente, do primeiro devemos dizer que Deus predefiniu —com vontade e concurso eficazes— a chamada milagrosa de São Paulo, tanto externa quanto interna; no entanto, o consentimento de São Paulo a essa chamada e, consequentemente, sua conversão —na medida em que dependia de seu livre consentimento— não foi definida do modo mencionado, como demonstraremos claramente em nossa resposta ao seguinte argumento de nossos adversários. Do segundo exemplo devemos dizer que Deus predefiniu do modo mencionado os sonhos de José e outras ajudas através das quais Deus o assistiu de maneira especial com o objetivo de que acontecessem muitas das coisas que lhe sucederam; no entanto, nem os ódios e perseguições de seus irmãos, nem seu lançamento ao poço, nem sua venda, nem o falso testemunho da mulher de Putifar, nem a incitação por parte dela ao adultério, foram predefinidos por Deus do modo mencionado —porque são pecados mortais—, como também reconhecem nossos adversários, mas, como Deus teria previsto as maldades de seus irmãos e da mulher de Putifar que aconteceriam dada a hipótese de que Ele, por sua parte, quisesse criar todo um ordem de coisas e de circunstâncias, somente teria decidido permiti-las. No entanto, Deus não teria predefinido do modo que sustentam nossos adversários outras ações não malvadas que aconteceram em relação a José, na medida em que dependiam do arbítrio criado, mas do modo que explicamos no membro anterior. Com respeito ao terceiro exemplo, Deus teria predefinido do modo mencionado tudo aquilo que se produziu milagrosamente. Assim também, a moção interna através da qual, segundo parece, Deus induziu a matrona a atar um fio vermelho àquele cuja mão aparecesse primeiro, foi predefinida por Deus, segundo parece. Com respeito ao quarto exemplo, a preferência ou eleição eterna pela qual Jacó foi escolhido antes que Esaú, somente se deveu à vontade livre de Deus. Embora essa eleição não dependesse da previsão das obras, no entanto, não se produziu sem a previsão das obras que ambos os arbítrios realizariam dada a hipótese da criação de uma ordem determinada de coisas, circunstâncias e auxílios. Além disso, Deus definiu algumas das coisas que se produziram na própria execução da eleição do modo que defendem nossos adversários, mas outras as definiu do modo que explicamos no membro anterior, como dissemos a propósito de outros exemplos.
13. Em sexto lugar: Nossos adversários argumentam assim: A conversão de São Paulo, de Maria Madalena e do ladrão que estava na cruz ocorreram por meio de um concurso ou auxílio de Deus eficazes por si mesmos, e Deus as predefiniu desde a eternidade para que acontecessem por meio desse auxílio; além disso, a liberdade de arbítrio dos três estava em harmonia com essas predefinições. Portanto, devem ser admitidas as predefinições por um concurso divino e eficaz por si mesmo e, ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que isso não causa nenhum prejuízo à liberdade de nosso arbítrio.
14. Em relação a este argumento, devemos negar que essas conversões tenham ocorrido por um auxílio divino e de tal modo eficaz que, no poder do livre-arbítrio de São Paulo, de Maria Madalena e do ladrão, uma vez prevenido, movido e incitado por este auxílio poderosíssimo, não estivesse o não consentir, como define o Concílio de Trento, sem contemplar exceção alguma, em relação aos auxílios da graça dirigidos para a conversão do pecador. Por isso, o fato de que deste auxílio se seguisse que os livre-arbítrios de São Paulo, de Maria Madalena e do ladrão se movessem com determinação em direção ao consentimento e à cooperação com este auxílio para alcançar a contrição e a conversão e, por isso, que este auxílio fosse eficaz ou não para realizar tal coisa, dependeu da livre vontade de São Paulo, de Maria Madalena e do ladrão, porque no poder deles estava se assim tivessem querido fazer com que este auxílio se tornasse ineficaz, não consentindo, nem cooperando com ele.
Mas, para que isso seja melhor compreendido, observe-se que nada exceto a contemplação diáfana de Deus obriga a vontade quanto ao exercício de seu ato, pois esta sempre permanece livre para exercer ou não o ato, embora, quanto maior for a bondade observada no objeto, maior a atração que este exerce sobre a vontade e menor a dificuldade, com tanto maior facilidade e frequência a vontade se determinará, em virtude da liberdade que lhe é própria, em direção ao ato ou apetição do objeto, embora, não obstante, sempre se mantenha em posse de liberdade para refrear esse ato, porque não nada que a obrigue quanto ao exercício de seu ato. Essa liberdade basta para que um ato possa ser meritório, se for em si mesmo um ato moralmente bom e for realizado por alguém que está em graça. Portanto, assim como, quando um homem vive entregue às coisas deste mundo, quanto maior for o bem temporal que lhe é oferecido e menor a dificuldade para obtê-lo, com tanto maior facilidade e frequência ele costuma desejá-lo sem demora a tal ponto que ninguém que seja prudente duvidará de que, se lhe for apresentada a oportunidade de adquirir gratuitamente milhares de moedas de ouro ou um reino ou monarquia terrena, imediatamente o desejará e, não obstante, o fará livremente quanto ao seu exercício, de tal modo que, se o desejar com pecado, ao menos venial, verdadeiramente pecará, embora isso não aconteceria, se não pudesse refrear esse ato —, assim também, Deus pode iluminar o pecador interiormente com uma luz tão intensa com o objetivo de que conheça seus próprios crimes, os danos que estes lhe causaram e, finalmente, a bondade de Deus e a ingratidão que exibiu diante dEle e a própria vontade do pecador juntamente com sua parte sensitiva pode mover-se para a contrição e dileção após ser inundada por um deleite tão sedutor que se deve acreditar absolutamente que esse pecador consentirá sem demora com o auxílio divino, embora sempre continue sendo livre para refrear esse ato, se assim o quiser; no entanto, muito raramente ou, mais precisamente, nunca refreará esse ato após ter recebido uma luz tão intensa e uma ajuda tão poderosa, especialmente se ao mesmo tempo lhe for apresentado algum sinal externo que o induza a agir assim, como foi a luz vinda do céu que cercou São Paulo, fazendo-o cair por terra e aparecendo-lhe Cristo, que lhe disse: 'Saulo, Saulo, por que me persegues?... É difícil para ti recalcitrar contra o aguilhão'. Segundo parece, assim foram as conversões de São Paulo, de Maria Madalena e do ladrão que estava na cruz. No entanto, não se devem medir segundo o exemplo dessas conversões outras que ocorrem diariamente na Igreja mediante auxílios comuns e com uma dificuldade muito maior por parte daqueles que se convertem. Além disso, as conversões de São Paulo, de Maria Madalena e do ladrão poderiam ser com um auxílio igual por parte de Deus mais ou menos intensas, conforme a cooperação mais ou menos intensa de seus respectivos arbítrios com o auxílio de Deus; parece que é isso o que Cristo elogiou em Maria Madalena, quando disse: 'Perdoados lhe são os seus muitos pecados, porque ela amou muito'. Tenha-se também em conta que, como explicamos em nossos Commentaria in primam secundae S. Thomae (q. 10), nesta vida nenhum objeto em particular é desejado necessariamente quanto à sua espécie de ato com uma necessidade tão omnimoda que, em consideração de algum mal que possa acarretar, não possa em alguma ocasião, embora isso raramente aconteça, ser rejeitado com nolição. Por essa razão, no poder de São Paulo, de Maria Madalena e do ladrão esteve o não querer converter-se sem que tal auxílio pudesse impedi-lo —, em razão da dificuldade que implica refrear-se de cair em pecado mortal durante toda a vida, como estavam obrigados a fazer para que sua contrição fosse verdadeira, embora isso aconteça muito raramente ou nunca com um auxílio tão grande. Por isso, também a essas conversões se pode aplicar a definição do Concílio de Trento, segundo a qual o livre arbítrio do homem, movido e incitado por Deus através dos auxílios da graça a alcançar a justificação, pode dissentir, se assim o quiser.
15. Em sétimo lugar: Nossos adversários argumentam assim: Deus predefiniu por meio de seu concurso —ou de um auxílio eficaz por si mesmo— cada um dos atos meritórios da Santíssima Virgem e de outros que também foram confirmados na graça, especialmente aqueles atos através dos quais se cumpriam os preceitos e que os confirmados estavam obrigados a realizar para não serem acusados de cair em pecado mortal e perder a graça. Mas isso não eliminou a liberdade daqueles que assim foram confirmados, porque embora não pudessem deixar de realizar em sentido composto esses atos —pois seria contraditório que alguém, estando confirmado na graça, não realizasse o ato que está obrigado a realizar para não ser acusado de cair em pecado mortal—, no entanto, ter podido não realizá-los em sentido dividido lhes bastou para que deles se dissesse que realizaram esses atos livremente e que, por isso, puderam agir meritóriamente. Portanto, devem ser admitidas as predefinições por concurso divino e eficaz por si mesmo. Além disso, o fato de que, se ocorre essa predefinição, um ato predefinido não possa deixar de se realizar em sentido composto, não suprime a liberdade de arbítrio, porque basta que possa não se realizar em sentido dividido.
16. Embora deva ser admitido que esses atos seriam predefinidos da maneira que explicamos no membro anterior, no entanto, com relação a este último argumento, devemos negar que esses atos teriam sido predefinidos por meio de um auxílio eficaz por si só, como se pretende sustentar neste argumento. Pois a Santíssima Virgem e outros que também foram confirmados na graça sempre tiveram liberdade —sem que a graça ou o concurso de Deus pudessem impedi-lo— para não realizar esses atos e fazer com que este auxílio ou concurso se tornassem vãos também no momento em que os realizaram, após terem recebido o auxílio sob o qual os realizaram; de outra forma, não teriam agido meritoriamente ao realizar esses atos naquele momento, estando sob esse auxílio. Não se pode negar à Santíssima Virgem, nem àqueles que também foram confirmados na graça, o seguinte elogio, entre outros que podem ser feitos ao homem justo que poderia ter transgredido os preceitos e não o fez: 'Poderia ter feito o mal e não o fez.'
A confirmação na graça depende de que Deus decida conceder a alguém, durante toda a sua vida, uma graça tão grande e auxílios tais que Ele preveja que, em virtude deles, essa pessoa nunca cairá em pecado mortal por causa de sua liberdade, embora pudesse cair nele, sem que essa graça e esses auxílios pudessem impedi-lo. Também depende de que Deus manifeste sua decisão de protegê-lo dessa maneira. Da mesma forma, Deus preservou a Santíssima Virgem de cair em qualquer pecado venial, porque lhe concedeu durante toda a sua vida essa graça tão grande e dons e auxílios tais e porque, desde a eternidade, decidiu conceder-lhe a graça e os auxílios com os quais, conforme previa, ela nem mesmo cairia em pecado venial por causa de sua liberdade, embora, por causa dessa mesma liberdade, pudesse ter caído nele sem que esses auxílios e dons pudessem impedi-lo —, se assim tivesse desejado. Assim, a certeza de que o confirmado na graça não pecará mortalmente no que lhe restar de vida a partir do momento em que se possa dizer que foi confirmado na graça e, portanto, não a perderá —, reduz-se à certeza da presciência divina, através da qual Deus prevê que, com essa graça e esses auxílios, isso acontecerá assim, por causa da liberdade do homem justificado da maneira mencionada; mas não se reduz a uma eficácia por si dos auxílios divinos, como se esse homem não pudesse cair em pecado mortal e como se a futura eficácia ou ineficácia desses auxílios em relação a esse efeito não dependesse da liberdade inata do homem assim confirmado na graça, por sua vontade ou sua recusa em consentir e cooperar com eles. Portanto, como o fato de podermos considerar São Pedro como homem confirmado na graça desde o dia de Pentecostes dependeu, em primeiro lugar, de que Deus quisesse conceder-lhe a plenitude da graça e dos auxílios que, desde a eternidade, decidiu conceder-lhe naquele mesmo momento e, em segundo lugar, de que Deus tivesse previsto que São Pedro, tendo recebido essa graça e esses auxílios, não cairia em pecado mortal por causa de sua liberdade durante o resto de sua vida embora isso último não acontecesse porque Deus assim o tivesse previsto, mas, ao contrário, Deus o teria previsto porque assim aconteceria por causa da liberdade de São Pedro, uma vez fortalecido com esses dons —, por essa razão, o fato de que o confirmado na graça não possa deixar de cumprir, em sentido composto, os preceitos que obrigam sob pecado mortal, não diminui em nada a liberdade que possui para poder não cumpri-los, se assim o desejar, porque se não tivesse a intenção de cumprir algum desses preceitos, como realmente está em seu poder sem que a presciência divina possa impedi-lo —, Deus nunca teria possuído essa presciência e, por isso, não poderíamos considerar São Pedro confirmado na graça da seguinte maneira, a saber: porque Deus teria decidido desde a eternidade conceder-lhe essa plenitude de graça e esses auxílios.
17. Finalmente: Nossos adversários argumentam assim: Deus predefiniu por meio de um auxílio eficaz em si mesmo os atos de nosso Senhor Cristo, especialmente por meio do auxílio graças ao qual Cristo cumpriu o preceito do Pai de redimir o gênero humano com sua própria morte; pois, como ao mesmo tempo Cristo era Deus, de modo algum poderia pecar e, por isso, não poderia deixar de realizar o ato com que cumpriu o preceito. No entanto, realizou este ato livremente; de outro modo, este ato não teria sido meritório e, consequentemente, com ele não teria redimido o gênero humano, sendo isso herético. Portanto, a necessidade em sentido composto de realizar algum ato seja porque foi predefinido por meio de um auxílio eficaz em si mesmo, seja porque através deste ato se cumpre o preceito e o realiza aquele que, na medida em que é Deus e homem ao mesmo tempo, não pode pecar de modo algum não suprime a liberdade em termos absolutos nem o mérito deste ato, porque basta que este ato seja livre em sentido dividido, como foi o caso do ato de Cristo. Por esta razão, as predefinições através de um auxílio eficaz em si mesmo não deveriam ser rejeitadas, como se suprimissem a liberdade dos atos, uma vez que, para que haja liberdade, basta que um ato predefinido possa não ser realizado em sentido dividido, como necessariamente devemos afirmar do ato de Cristo.
Sobre a impecabilidade e a liberdade de Cristo
18. Este argumento nos obriga a explicar, fora do lugar apropriado, por que razão, em primeiro lugar, teria sido contraditório que Cristo, enquanto peregrinava para a beatitude, tivesse pecado; por que razão, em segundo lugar, Cristo teria tido ao mesmo tempo a liberdade de não realizar aquilo cuja omissão o teria tornado culpado; e, por isso, em terceiro lugar, por que razão ele teria feito méritos ao cumprir tanto os demais preceitos como lemos em João (XV, 10): 'Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, assim como eu guardei os mandamentos de meu Pai e permaneço no seu amor' quanto o preceito particular do Pai de enfrentar sua própria morte para a redenção do gênero humano, como lemos em João (X, 18), onde, a respeito de sua morte, Cristo diz: 'Este é o mandamento que recebi de meu Pai'; e em João (XIV, 31), sobre esta mesma paixão e morte, ele diz: '... conforme o mandamento que meu Pai me deu, assim faço. Levantai-vos, vamos daqui'; e em Filipenses (II, 8) lemos: '... humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz...'; e em Hebreus (V, 8): 'Embora fosse Filho, aprendeu a obediência por meio dos sofrimentos.'
19. Mas, para que isso seja melhor compreendido, observe-se que uma grande diferença entre algo que se deve à natureza humana assumida pelo Verbo em razão da assunção ou da graça da união, e algo que é conforme a essa natureza em virtude da pura assunção, desconsiderando qualquer outro dom que lhe seja devido em razão da graça da união. Pois, como o Verbo, enquanto Verbo, não influencia a natureza humana assumida, mas determina sua dependência sem qualquer mediação de causalidade ─embora seja toda a Trindade, entendida como Deus único, que produz eficientemente a união hipostática, por meio de um influxo sobre a humanidade em virtude do qual à natureza humana é conferido de modo sobrenatural o próprio ser, mas com dependência do suposto do Verbo e, daí, sua união com o Verbo divino─, por essa razão, a natureza assumida em virtude precisamente dessa união carece de outras forças que não sejam aquelas que possuiria se, abandonada a si mesma, subsistisse em si mesma ou em seu próprio suposto.
20. Pois, da mesma forma que, no momento em que —no sacramento da Eucaristia— ocorre a transubstanciação do pão no corpo de Cristo, os acidentes que estavam na substância do pão passam a existir por si mesmos pelo influxo sobrenatural de toda a Trindade sobre eles —mas não como se recebessem um novo ser, mas o mesmo ser, embora independente do sujeito além de suas próprias naturezas, através de um novo influxo como causa eficiente, graças ao qual se fortalecem em si mesmos e se compensa e suple a causalidade do sujeito material que, em outras circunstâncias, lhes é necessária para existir—, assim também, como a natureza humana singular implica por si mesma uma subsistência em si mesma ou, se abandonada a si mesma, ser ela mesma um suposto, pois não precisaria de mais nada em que se sustentar e se manter, por isso, além de sua natureza, toda a Trindade a faz dependente —por meio de um novo influxo sobre ela— do suposto do Verbo ao qual se une, como se existisse e se sustentasse nele; no entanto, a faz dependente, mas não no sentido de que a Trindade lhe confira outro ser por meio desse influxo, mas o mesmo ser que existe enfraquecido em si mesmo, na medida em que precisaria de outro suposto no qual se sustentar de maneira melhor e mais digna do que subsistindo em si mesma ou em seu próprio suposto.
21. Daí se pode entender facilmente que a natureza humana, através de sua assunção pelo Verbo divino, alcança a graça da união, ou seja, o Verbo é seu suposto. Assim como, por isso mesmo, a natureza humana proporciona ao Verbo o ser deste homem que ao mesmo tempo é Deus verdadeiro, assim também, por sua vez, graças ao Verbo, a natureza humana alcança uma dignidade infinita, em razão da qual as obras que realizar serão meritórias e de valor infinito. Além disso, embora a natureza humana alcance por meio de sua assunção a graça da união e esta graça seja raiz e origem de que a ela sejam devidos todos os dons que deve possuir o homem que ao mesmo tempo é o unigênito do Pai, no entanto, sem esses dons não possuirá maiores forças do que as que teria se, abandonada a si mesma, subsistisse em si mesma ou em seu suposto próprio. Por essa razão, da mesma maneira que, sem que possa impedi-lo sua assunção, a natureza humana abandonada a si mesma poderia morrer, como morreu em Cristo, e poderia sofrer as demais calamidades e misérias que sofrem todos os demais mortais, assim também, poderia estar em posse dos movimentos naturais de sensualidade e em posse das paixões e rebeliões contrárias à razão que experimentam os demais maiores ou menores em função da qualidade da compleição que lhe fosse conferida e também teria uma liberdade natural de arbítrio, pela qual poderia tanto resistir, como consentir, exatamente igual que se subsistisse em si mesma ou em seu suposto próprio. Portanto, do mesmo modo que a natureza humana em Cristo necessitou da luz da glória para contemplar a essência divina e para possuir uma alma bem-aventurada também necessitou da glória do corpo ou dos dotes que, desde o momento da ressurreição, redundaram sobre seu corpo graças à glória de sua alma, para ser imortal e incapaz de padecer e estar em posse de tudo o mais que caracteriza os corpos gloriosos —, assim também, para que em sua parte sensitiva, enquanto ainda peregrinava para a bem-aventurança, não se levantassem paixões e movimentos contrários à razão, necessitou, por um lado, da plenitude da graça habitual e das virtudes e, por outro lado, de uns dons como a justiça original em sua parte sensitiva, com o objetivo de refrear esta última e mantê-la na que deve ser sua função; o mesmo deve ser dito de outros dons necessários para outras funções e fins.
22. Além disso, observe-se que, embora a Cristo ou à sua humanidade se devesse, em virtude da graça da união, tudo o que alcançou após sua ressurreição, no entanto, em primeiro lugar, como Deus decidiu encarnar-se para que Cristo, através de seus méritos e de sua morte, redimisse o gênero humano ao mesmo tempo que, com sua vida santíssima e perfeita, oferecia aos mortais um exemplo ilustríssimo que os instruísse em todo gênero de virtudes e de perfeição e os estimulasse e urgisse vigorosamente a imitá-lo e, em segundo lugar, como chegar por méritos próprios à glória e exaltação do corpo suporia para Cristo uma glória maior que ter estado em posse delas desde o princípio, por essas razões, daí se segue que, embora esse corpo santíssimo tivesse alcançado desde o momento de sua concepção no útero da Virgem por obra do Espírito Santo uma compleição perfeita e sua alma tivesse contemplado a essência divina e, além disso, Cristo inteiro, em corpo e alma, tivesse se enchido de hábitos e dons que não eram contrários ao fim da encarnação do qual falamos anteriormente —, nem ao estado de quem peregrina para a beatitude e ao mesmo tempo a compreende, no entanto, não teria recebido a glória do corpo até o momento de sua ressurreição, embora esta não seria a única que Deus teria impedido milagrosamente que se seguisse da glória da alma, mas ao mesmo tempo também lhe teria comunicado a visão de sua essência, o amor beatífico e sua fruição de tal modo que, além da natureza desses bens, refreando os efeitos que daí teriam de seguir-se por necessidade de natureza, teria deixado que a vontade de Cristo fosse capaz de experimentar dor e tristeza, dotando-a de liberdade para cumprir ou não os preceitos que obrigavam sob perigo de agir culposamente, exatamente como se a alma de Cristo tivesse carecido de glória, porque isso era necessário para que pudesse agir meritóriamente, para que redimisse o gênero humano com sua vida inocente e com sua morte, para que, de maneira tão louvável e honrosa, deixasse aos mortais o exemplo ilustríssimo de sua vida e para que alcançasse a glória e exaltação de seu corpo. De fato, desde o momento de sua concepção no útero da Virgem até que exalou sua alma na cruz, Cristo pôde considerar-se peregrino para a beatitude compreendendo-a simultaneamente pela seguinte razão, a saber, porque a glória de sua alma estava reprimida até tal ponto que sua vontade possuía liberdade para cumprir ou não os preceitos, exatamente como se tivesse carecido dessa glória e tivesse sido um simples peregrino para a beatitude.
23. Mas vamos concluir a refutação do argumento mencionado, conforme o que explicamos até aqui: se considerarmos Cristo segundo aquilo que, em razão da graça da união, Lhe é devido, teremos que dizer que Cristo não poderia pecar de modo algum, como afirma Santo Agostinho (De praedestinatione sanctorum, cap. 15; Enchiridion, cap. 40; e também em outros lugares) e os demais Padres em comum, porque à humanidade de Cristo era devido que Deus não Lhe permitisse pecar de modo algum e porque teria sido absolutamente feio e indecoroso que o Verbo pecasse, mesmo por meio da natureza assumida. Por esta razão, assim como é contraditório que Deus minta não porque Lhe falte poder para formar as palavras que, se proferidas, resultariam em uma mentira, mas porque mentir é indigno d'Ele e totalmente oposto à Sua bondade infinita —, da mesma forma, era contraditório que Cristo pecasse, não porque, enquanto peregrino em direção à beatitude, Lhe faltasse a faculdade de transgredir os preceitos, mas porque Deus era contrário a permiti-lo e pecar mesmo por meio da natureza assumida é algo totalmente oposto à bondade infinita do Verbo divino, sendo Deus, por isso, contrário a permiti-lo. Por esta razão, era tarefa da providência divina dispor as coisas de tal modo que, salvaguardando a liberdade de Cristo que era totalmente necessária para o mérito de Seus atos e para os fins dos quais falamos —, Ele não pecasse, como de fato aconteceu. Daí também que, conforme o que dissemos em nossa resposta ao argumento anterior, Cristo não poderia pecar em sentido composto, porque Ele era o primeiro dos confirmados na graça e no bem por meio de dons e auxílios excelentes, até em maior medida que os de Sua mãe santíssima. Pois seria contraditório que, em sentido composto, pecasse alguém que foi confirmado na graça e no bem, embora não em sentido dividido e em termos absolutos, porque se fosse pecar, como está em Seu poder sem que os dons recebidos pudessem impedi-Lo —, Deus não teria previsto que este homem confirmado na graça não pecaria, em razão de Sua liberdade e dos dons recebidos, e, por isso, não poderia ser considerado confirmado na graça e no bem, como explicamos em nossa resposta ao argumento anterior.
Mas se considerarmos Cristo como peregrino em direção à beatitude além disso, a glória de sua alma dependia dos fins de que falamos, de tal modo que não se arrebatasse de Cristo a liberdade de transgredir os preceitos, como se arrebata dos outros bem-aventurados que não são ao mesmo tempo peregrinos em direção à beatitude e ao enfrentar sua morte com grande dificuldade e aflição, realizando outras obras difíceis e penosas para a salvação do gênero humano como lemos em Lucas 12:50: 'Tenho que receber um batismo. E como me sinto angustiado até que se cumpra!'; em Mateus 26:37-39: '...começou a entristecer-se e angustiar-se (em Marcos 14:33, lemos: '...começou a sentir medo e angústia'). Então lhes disse: 'Minha alma está triste até a morte; ficai aqui e vigiai comigo.' E, adiantando-se um pouco, prostrou-se sobre o rosto, orando e dizendo: 'Pai meu, se é possível, passa de mim este cálice; contudo, não seja como eu quero, mas como tu queres'; e tão grande foi sua agonia e aflição que suou como grossas gotas de sangue, que corriam até a terra, conforme relata Lucas 22:42; e isso também é confirmado pela seguinte passagem de Hebreus 4:15: 'Não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se de nossas fraquezas: antes, foi tentado em tudo à nossa semelhança (isto é, como se fosse um de nós), mas sem pecado'; e este outro de Mateus 27:46: 'Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?' se, como dizemos, considerarmos Cristo dessa maneira, sem dúvida, sem que as outras razões de que falamos possam impedi-lo, ele realmente possuía a liberdade de não fazer tudo aquilo a que estava obrigado por preceito, com a certeza, no entanto, de que, opondo-se a isso com grande força sua própria natureza, ele cumpriria tudo até o fim e de maneira perfeita, em razão de sua liberdade, apoiado nas ajudas e nos dons potentíssimos recebidos.
Por isso, a morte de Cristo não foi apenas voluntária, mas também completamente livre por liberdade de contradição ou mesmo de contrariedade —, e ao mesmo tempo foi um preceito imposto a Cristo, sem que uma coisa seja contraditória com a outra. De fato, Cristo ensinou ambas as coisas quando, conforme lemos em João 10:17-18, disse: 'Por isso o Pai me ama, porque eu dou a minha vida para retomá-la. Ninguém a tira de mim, mas eu a dou por minha própria vontade. Tenho autoridade para dá-la e autoridade para retomá-la. Este é o mandamento que recebi do meu Pai.'
Por isso, a morte de Cristo foi extremamente custosa e difícil, porque a natureza de Cristo se opunha e a rejeitava ao máximo, como é evidente pelos testemunhos que acabamos de citar e pela seguinte passagem de Romanos 15, 3: '...Cristo não buscou sua própria satisfação, como está escrito: Sobre mim caíram os ultrajes daqueles que me ultrajavam...'; e, no entanto, devido às ajudas e aos dons nos quais Cristo se apoiava e à incrível grandeza e fervor caritativo com que honrava a Deus e ao próximo, Ele se mostrou totalmente disposto a morrer, como lemos em Mateus 26, 41: '...o espírito está pronto, mas a carne é fraca'; e no Salmo 18, 6: '...lança-se alegre, como um valente, a percorrer seu caminho', ou seja, o sofrimento da paixão e da morte com que ela terminou.
Finalmente, também por isso, a morte de Cristo e suas demais obras foram consumadas e foram perfeitas em todos os sentidos, como era necessário em um redentor tão grande como Cristo, tanto para exemplo e benefício nosso, quanto para máxima louvação e honra sua.
24. Portanto, com relação a este argumento, formalmente devemos negar que Deus predefinisse, por meio de um auxílio eficaz em si mesmo, os atos de Cristo ─incluindo aquele através do qual cumpriu o preceito do Pai de redimir o gênero humano com sua morte─ de tal modo que, diante deste auxílio, Cristo carecesse de liberdade para não realizá-los. Certamente, isso implicaria deixar Cristo sem liberdade no momento em que os realizava e, portanto, sem mérito.
Quanto à demonstração, explicamos ─mas não em razão da eficácia do auxílio, e sim por outras duas razões─ que, em sentido composto, Cristo não podia pecar e, consequentemente, também não podia deixar de realizar esses atos; mas, em sentido dividido e em termos absolutos, isso não eliminou em Cristo a liberdade de poder não ter realizado esses atos no mesmo instante em que os realizou.
É bastante evidente, pelo que dissemos, que tudo o mais que se acrescenta nesse argumento não demonstra que seja necessário admitir as predefinições de Deus por um auxílio eficaz em si mesmo, porque tal auxílio elimina sem mais a liberdade no arbítrio daquele que o recebe no instante em que realiza o ato.
Além disso, o sentido dividido, conforme entendido por aqueles que defendem essas predefinições, não deixa liberdade ao arbítrio para que seja ajudado por um auxílio eficaz por si só, mas apenas deixa liberdade a Deus para conceder ou não esse auxílio e, assim, para fazer com que o arbítrio realize ou não esse ato, como explicamos anteriormente; mas esse não é o sentido dividido que distinguimos do composto, dado o qual Cristo pelas outras duas razões que mencionamos não poderia pecar, nem deixar de realizar o ato ao qual estava obrigado por preceito, como explicamos.